Tema 002 - ALICATE
BIOGRAFIA
STOP
Viviane Alberto

A Maria Eugênia foi vizinha de berço da Eduarda, que conheceu a Marta no 3º primário. A cidade era grande, um colosso, mas existem laços que resistem a tudo. Principalmente, depois de um juramento selado a cuspe.

E elas haviam jurado que nunca, jamais, a rotina as separaria. Veio a formatura, vieram os casamentos, mas a promessa resistia. Cuspe é cuspe, com batom então, questão de honra.

O combinado era o jantar das quintas-feiras. Um rodízio. A cada semana, um casal recebia os outros dois em sua casa.

Chovia muito nessa quinta. A casa era a da Maria Eugênia e do Felipe. Louça lavada, vídeo quebrado, estavam jogando Stop, pra matar o tempo. A Marta sorteava as letras.

- Vai gente! Animal com a letra...M!

- Mico!

- Mula!

- Marreco!

- Mastodonte!

- Mariposa

- Macaco! – Disse o Antonio Carlos.

- Mamute, Tuca... – Foi a Eduarda que cochichou no ouvido dele. Tava estranha a cara dela.

- Ahn?

- Nada, não. Deixa.

- Vamos! Vamos lá! Fruta com a letra...C!

- Cacau!

- Carambola!

- Cana!

- Cassís!

- Cirigüela!

O Antonio Carlos pensou um pouco antes de falar. A Eduarda – Duca, porque ela era ducarlos – estava tentando dizer alguma coisa, fazendo mímica com a boca.

Cu – pu – a – çu, soletrava a Eduarda, perdendo a paciência. Tão simples! Cupuaçu.

- Coco! – Festejou o Antonio Carlos.

A Eduarda nem olhava mais pra ele. Ele achou que a ameixa do manjar tivesse feito mal pra ela.

- Próxima, próxima! – A Marta era boa naquilo. Parecia um Raul Gil de saias – Coisas com a letra...

- Coisa? O que é uma coisa, Ma?

- Ai, Ce! – Ce, era o César, marido da Marta, a Ma – Se não é comida, não é bicho, só pode ser coisa, oras. Vai, vamos lá. Coisas com a letraaaa....A!

- Abóbada!

- Açaímo!

- Alguidar!

- Androceu!

- Androceu não vale! Androceu é parte de flor! – Protestou o Felipe.

- Ta. Andaime! – disse a Maria Eugênia mostrando a língua.

- Ancinho!

- Alicate!

A Eduarda levantou fazendo um estrondo com a cadeira, que ela empurrou pra trás.

- Alicate, Antonio Carlos? Alicate? Tinha azeviche, aurícula, áulico, áscua, arbusto, argueiro, axial, anágua, aliá, andor, adobe!Mas, não! Você disse, alicate! Você abriu a boca pra dizer alicate,

O Antonio Carlos continuava com a boca aberta, sim. O queixo ia quase até os joelhos. Tão calma a sua Duca! Tão doce! De repente, despejava aquela erudição toda em cima dele!

A Marta chegou com um copo de água com açúcar.

- Toma, isso vai te acalmar um pouco.

- Vocês não entendem? Eu não quero me acalmar! Eu cansei! Não quero mais!

- Claro, claro! A gente pára. Quer jogar Banco Imobiliário? – O Felipe tentava consolar.

- Duquinha....olha pra mim, mas o que foi que eu fiz?

- O alicate... – desabou num choro que não acabava mais. Esses de soluçar.

Os outros se reuniram num canto.

- Ta bom, Carlos. A gente não vai chamar a polícia. Mas você fica longe dela, hein! Você e seu alicate...

Olharam pra ele com ódio, imaginando as coisas terríveis que a coitadinha teve que passar nas mãos daquele pervertido.

- Ei, não é nada disso! Vocês estão malucos? Eduarda, diz pra eles! Diz pra mim também, explica o que está acontecendo!

Passando as costas da mão no nariz todo vermelho, Eduarda tentava se recompor.

- Não gente... Não foi só o alicate, não. Foi o coco. O macaco...

O César queria chamar a defesa civil. Estavam diante de um monstro!

- Foi tudo isso junto. Essa...essa...coisa pequena! Esse vernáculo curto. Essa falta de vocábulos do Tuca que me irrita! Sabe, você tenta construir uma história pra sua vida, floreia, dramatiza. E depois, arruma um galã que só conhece coco, macaco, alicate. Dói, gente! Dói!

No caminho de volta pra casa, não trocaram uma só palavra. Eduarda se trancou no banheiro enquanto Antonio Carlos fazia as malas.

No escuro do quarto, Felipe acariciava o braço de Maria Eugênia.

- Que coisa, não? Pareciam se dar tão bem...

- É, a gota d’agua...

- Acho que não tem volta, não. Incompatibilidade de verbos é fogo.

- De substantivos, Fe. Eles brigaram por causa de substantivos.

- Eu sei amor, só quis dar um exemplo.

- Sei...Coisa com a letraaaaa....R!

- Redingote, benzinho, redingote.

Maria Eugênia abraçou Felipe mais forte. E dormiu tranqüila. Redingote...é, era o homem da sua vida.

Protegido de acordo com a Lei dos Direitos Autorais - Não reproduza o texto acima sem a expressa autorização do autor