Tema 009 - CÓDIGO
BIOGRAFIA
STERN
Flávia Cintra

Dia desses eu e Lesh saímos para recontar nossas estrelas. Já era noite quando chegamos em um dos trópicos. Uma noite fria de junho. Enquanto ele conferia números e posições, eu procurava as luzes artificiais. Sempre foi assim. E, daquela vez, eu não fiz diferente.

Eu não me lembro bem do ponto onde nós chegamos. Lesh sempre cuidou da checagem das coordenadas e, sendo sincera, nessas expedições eu sempre me sentia um peso morto, pelo menos em relação ao trabalho oficial. Minhas atenções sempre foram outras, sempre procurei saber sobre as histórias de amor que andam sob as tais luzes artificiais. Lesh que olhasse por nossas estrelas.

Ele comparava mapas e céus e pontos brilhantes; eu procurava as novidades dos mundos pelos quais passávamos.

Naquela noite chegamos a uma pequena grande cidade e eu vi várias luzes sob uma cobertura de estrutura pouco segura que me fascinaram. Estavam dispostas lado a lado e, à medida que suas intensidades aumentavam ou diminuíam, emitiam sons. Percebi que se tratavam de máquinas. E havia gente, também.

Eu vi mesas e bebidas. E vi alguém que desviou minha atenção de repente. Talvez fosse seu cheiro de fruta ou sua aura. Mas foram seus olhos que me chamaram. Havia encontrado ali a história de amor que procurava.

Depois de tanto tempo envolvida com essas procuras incessantes, a minha percepção tornara-se muito aguçada. E era como se as grandes histórias já soubessem da minha presença e se mostrassem para mim.

Cheguei mais perto, bem perto. Queria saber sobre o que falavam. Minha atenção estava unicamente voltada para ela e seus olhos. Percebi que o corpo estava levemente febril e que a voz saía com dificuldade. E que sofria. Os pensamentos estavam transtornados e o sorriso deu lugar a uma tristeza desconcertante. Acabara de ter uma grande desilusão. Só ele não sentiu o mal que acabara de causar.

Ele era o rapaz sentado ao seu lado, formando um ângulo de noventa graus. Não a olhava mais nos olhos. Talvez por isso não tenha percebido a dor que havia causado àquela alma. Tive vontade de agredi-lo ali mesmo, mas me contive. O único tiro havia alcançado o alvo.

Ela continuava abalada, era como se não conseguisse acreditar no que ouvira quase um minuto antes. Pensou ser uma brincadeira ou algo assim. Mas era sério. E completamente desnecessário. Foi o começo do fim de algo que nunca havia começado. Aquilo tornara-se inaceitável.

Levantaram-se das cadeiras brancas de material plástico. Ele, muito irritado, tomou a frente. Parecia querer lançar chamas por todo o corpo. De repente me veio uma imagem à mente e lembrei-me de já tê-lo visto antes, de já tê-lo visto destruir uma outra alma. Foi uma grande coincidência encontrá-lo ali. Jamais havia acontecido isso, pois a possibilidade de escolha sempre foi muito grande. Lesh iria dizer que talvez fosse um sinal, mas ele estava ocupadíssimo visitando seu grande território e eu tive de tirar minhas próprias conclusões. Tentaria fazer algo.

Vi que ela queria chorar, mas a dor ficara presa na garganta junto à voz. Vi, também, que era possuidora de um orgulho imensurável e que aquela era a primeira vez que amava. E ele a fizera sofrer antes mesmo de saber.

Ela não se reconhecia. Sempre tão determinada e racional, inabalável até, não conseguiu reagir a tamanho insulto. Simplesmente calou-se. O corpo já ardia em febre, a voz não obedecia a qualquer comando do cérebro. Onde eu havia previsto uma explosão de fúria seguida de um ardoroso combate verbal, ocorreu exatamente o contrário: o barulho ecoou somente dentro do seu corpo coberto de ouro. Foi deprimente ver uma alma ser tão instantaneamente destruída. Se eu tivesse chegado segundos antes, teria sido capaz de impedir tamanha catástrofe. (Sim, eu sempre defini sofrimentos dessa natureza como verdadeiras catástrofes e sim, eu seria capaz de interferir.)

A situação estava angustiante. Concentrei-me nele, então. Outro grande e incurável orgulhoso. (Incrível como eu pude encontrar juntos dois Fernandos Pessoa). Eu não conseguia entender os lampejos de seu raciocínio desconexo. Ele estava com um ódio imenso passeando através do sangue, passando por vasos e capilares. Era difícil captar o que irradiavam aquelas ondas cerebrais. Mesmo assim, acho que devido à longa experiência adquirida através dos tempos, encontrei, finalmente, a resposta para tamanha raiva: ele fora vítima de um caso típico de ciúme perturbador e incontrolável. Diagnóstico certeiro.

Fiquei mais simpática à ele. Eu sempre admirei os homens que morrem pelos amores de suas vidas. Com aquele ciúme ele seria capaz de morrer e matar por ela. Mas ele, covarde no seu acesso de fúria, não pesou suas palavras nem mediu conseqüências. Nada, nem mesmo seu admirável ciúme, justificaria aquela atitude cruel. Teria sido mais nobre admitir o grande amor que sentia.

De repente me abandonaram ali e deixaram as luzes para trás. Acompanhei-os com os olhos e vi o que parecia ser um grande rubi. Poderia ser até uma cereja. Também emitia luzes artificiais. Sentados lado a lado, não suportando mais a presença um do outro, aquela parecia ser a última vez que teriam de passar por tal situação.

Não ouvi mais nenhum som, já estavam longe. Não pude acompanhá-los, pois Lesh me chamara. Eu tinha de ir ao seu encontro. Íamos prosseguir atrás dos nossos sonhos.

Minhas lágrimas surgiram espontaneamente. Para quem desde sempre acompanhou nascimento e morte de estrelas, o sofrimento daquela alma deveria parecer ínfimo. Mas, ao contrário das minhas estrelas, eu sei que aquele amor poderia ter sido eterno.

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