FOLHA
Ana Peluso
 
 

Ou cada um tem a folha que merece.
Ou ainda: cada um coloca na folha o que quer.
Ou mais: sua folha pode ser verde, a minha é branca.

- Alguém tem uma folha? Ah, obrigada... Sentam-se todos novamente quando me lembro que também não trouxe a caneta. Alguém pode me emprestar uma caneta? Todos olham para mim, fico inexplicavelmente mais magra e menor. Meu sorriso trava no rosto e quando percebo já se transformou em algo semelhante a um esboço de tristeza. Os olhares penetrantes costumam diluir nossos sorrisos, mesmo quando não queremos, o que me faz pensar que existe muita gente com a paranormalidade acentuada ultimamente. Cinética pura. Sem bipartidarismos.

Pronto! A fama tava feita! A ‘mãe dos loucos’ baixou e cantar pra subir agora, não tem nada a ver. Ia pegar mal pra burro. Até porque ‘canto pra subir’ sem atabaque, não é canto pra subir legítimo. Engulo a entidade e tento prestar atenção a narrativa do senhor em pé, que me lembra o pastor da igreja da Nedina. Mal sabe ela que tem andado pelas minhas folhas ultimamente. Com vários nomes diferentes, que é para não enjoar, ou melhor, e mais politicamente correto: para preservar a identidade das pessoas envolvidas. No caso, ela.

Ufa! Tenho folha! Tá bom, é apenas uma, mas seu eu me esforçar em esconder minha mania de grandeza, e fizer aquela letra miudinha de advogado recém formado, tentando imitar as linhas desenhadas do pai desembargador, em suas assinaturas, conseguirei colocar alguns bichos para fora, até que acabe essa droga de seminário de web developing, do qual me arrependi profundamente de ter me inscrito, principalmente por que me fez acordar antes do horário programado. Aquele em que meus olhos se abrem. Só tem um probleminha... a caneta não funciona.

- Senhor... Ei, senhor!

Pouso minha mão sobre os ombros de um senhor calvo, sentado a minha frente e com meus dedos delicados, tentando passar humanismo, pergunto baixinho se ele tem outra caneta para emprestar.

- Essa está seca...

O senhor se vira e quase me enfarta aos trinta e quatro! O pastor! Seu Honório em carne, osso e espírito santo! Ele se vira e estranha minha expressão de quem acabou de reconhecer alguém. Tenho vontade de dizer um olá, tudo bem, mas me lembro que eu conheço ele, mas ele não me conhece! Nedina tem mania de carregar fotografias do pastor, das obreiras (onze ao todo) e de seus sete filhos na carteira. Ele me olha intrigado e um sujeito ao seu lado me olha com o rabo do olho, como quem diz: vai começar de novo? Seu Honório nada entende, mas me estende uma bic. Preta. Daquelas que borram no calor, e está um calor dos diabos. A paranormalidade volta a funcionar, pois quando penso nisso, o olhar do pastor muda, ele me mede dos pés a cabeça, em meio segundo (não precisaria mais do que isso), se ajeita na cadeira e volta interessado o olhar para o orador do seminário, ou expositor do seminário, ou seminarista, ou sei lá o que esse outro senhor pensa ser. Mas é. Está em pé, lá em cima de um palco de trinta centímetros de altura, engasgado na gravata azul marinho, com bolinhas, (ou será losangos?) violeta.

É,porque está. E como não se trata de um holograma, ou algo do gênero, penso que ele é um ser. Penso em perguntar para a jovem senhora ao lado, se haveria apresentações de hologramas também, mas me contenho. A ‘mãe dos loucos’ está contida, e nem pai de santo, faz ela rodar agora, pois tenho a caneta e as folhas em mãos!

Volto minha atenção totalmente para a folha branca. E fico vermelha de raiva! Deu um branco! Minha vontade é gritar incêndioooo, só para ver todo mundo sair correndo. Puro ódio! Acabaram de interferir em um processo literário e isso é imperdoável. Mas me contenho novamente. A dor é dilacerante, mas a continência é necessária.

Sou obrigada a assistir o restante do seminário de web developing, pensando no texto que estava na ponta da mente e acabou de cair na vala do esquecimento. Paradinha de meia hora para tomar café ou aquilo que chamamos de coffee break, o que dá na mesma, mas parece que ninguém nota, pois o senhor orador, expositor, seminarista e chato, sorrindo, avisa:

-Vamos fazer uma parada para um coffee break, oferecido pela empresa, onde vocês podem tomar um cafezinho.

Todos riem, inclusive eu. De puro nervosismo. O que eu penso que ninguém notou, foi o trocadilho infeliz de inglês para português e começo a sentir uma espécie de depressão ao me lembrar desses termos todos incorporados à nossa língua. Também quero um cigarette break, um noise break e se possível um earth moving break, para eu poder me recompor.

- Ai, minha língua!

Um rapaz ao meu lado sorri e pergunta se eu sou a moça da caneta. Queimei minha língua com aquele café horroroso. Sem açúcar, sem mel, sem néctar, sem aspartame, sem nada que me lembrasse a doçura do ser. Sim, eu sou a moça da caneta e da folha. Papo vai, papo vem, ele também escreve. Trocamos e-mails e voltamos para a sala, onde o palco de trinta centímetros acolhe uma senhora de meia idade, um tanto quanto gordinha, simpática e falante. Nova etapa do seminário: a demonstração de ferramentas imprescindíveis e indiscutíveis para qualquer site se tornar um sucesso... Sento-me no fundo da sala, por precaução, mas percebo que o pastor Honório me procura, e acenando sério, faz perceber-se. Está preocupado com a bic. Eu sei! Posso ver em seu olhar!

Ah, enfim eu e minha folha. E a bic do pastor... Um trio e tanto! Nem conto o que contei pra bic, e ela pra folha. Ou até posso contar quando pedirem um conto, em vez de uma crônica. Mas nós três, na surdina, narramos um palavrório dos diabos!

O pastor me pede a bic. Como se fosse um castigo pelos meus pensamentos. Penso em não devolver. Sou rebelde mesmo. E já que a ‘mãe dos loucos’ baixou, ele que tratasse de exorciza-la. Agradeço o empréstimo, sorrindo, ele devolve com outro sorriso. Ele sorri pela primeira vez em três horas.

Na porta de saída, que é a mesma de entrada (ainda não consegui entender o porque de findado algum tipo de reunião, nos mandam sair pela porta da saída, se é a mesma pela qual entramos), todos reunidos, um senhor de blusa xadrez e suspensórios, olhar sério por debaixo dos óculos, me pede uma folha. Titubeio entre a verdade (meu fim...) e a mentira (meu êxtase!) e fitando ele por alguns segundos, aponto o dedo para o pastor e digo:

- Folha eu não tenho. Mas ele tem uma bic preta.

 
 
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