Tema 016 - COMO EVITAR UM HOMEM NU
BIOGRAFIA
COMO EVITAR UM HOMEM NU
Ana Peluso

Estava ela pensando com seus botões (que são vários e todos diferentes), que o senhor da casa da frente era no mínimo diferente no que se referia ao vestuário. Tanto quanto ela mesma.

Possuíam coincidências, ao menos em alguma coisa, e já lhe acenava a possibilidade de arranjar enfim um namorado digno de sua excentricidade. Até porque já se conheciam há tantos anos... De vista, mas se conheciam...

Isso lhe acendeu uma idéia: levar-lhe um bolo de maçã e canela como presente e perguntar por um possível disco de Adoniran, que sabia que ele possuía, pelo alto volume das melodias à que submetia o ouvido da vizinhança toda.

O preparo do bolo foi fato corriqueiro, pois já se encontrava acostumada à mesma receita há anos, pois preparara essa mesma receita para toda a geração do meio da família, ou seja, os sobrinhos.

O cheiro de canela invadia o ambiente e ela foi até o toucador, arrumar os fios de cabelos (alguns já brancos) atrás do lenço que usava nos cabelos finos.

Usava lenços como que para dar maior volume ao restante de fios existentes.

Sua pele fina e sem brilho denunciava que estava começando a virar a esquina. Aquela. A que todos temem.

Alguns disfarçam, outros aceitam. Ela aceitara, até porque não havia outro jeito. E olhando-se, após a tentativa de ficar em melhor forma para a visita, não obtendo o resultado desejado, deu de ombros e foi ter com o bolo que esfriava sobre a velha pia de mármore acinzentado.

Uma excitação lhe comia o ventre, pois se sabia paquerada pelo velhote da casa da frente, que grande coisa não era, mas era alguma coisa, e isso é o que interessava. O resto era apenas cheiro de canela.

E como sempre ia com as roupas de sempre, ou seja, as mesmas. Aquelas de várias cores misturadas em um só quadro do vestuário.

Saia vinho, blusa de flanela xadrez azul e vermelha, meias creme e chinelas de lã de carneiro.

Seu platônico amado também não era muito diferente. Sua ceroula aparente por baixo dos casacos de lã que costumava usar, fazia dele um ser tão estranho aos olhos dos outros, inclusive dela própria, que muitos riam ao vê-lo passar vestido só de ceroula e casaco com as compras do mercadinho em uma sacola.

Ela sabia-se objeto da mesma perseguição malévola de quem não entendeu ainda que boas roupas custam muito dinheiro e que usavam, os dois, aquilo que sobrara da farta mesa do tempo, que havia carcomido-lhe as boas vestes de outrora.

Bateu à porta, o bolo nas mãos, em cima de um prato de cerâmica branco, e ficou no aguardo da porta ser aberta a qualquer momento. Nada aconteceu. Bateu novamente, imaginando que o anfitrião pudesse estar a se arrumar em frente ao espelho, tentando parecer-lhe também menos pobre ou mal vestido, que de fato era. Como ela mesma.

Nenhuma reposta, após alguns poucos minutos e o prato já lhe pesava nas mãos. Passou esse para uma só mão e tacou mais três batidas na porta de madeira recém pintada com cal.

Novamente foi pega pela horrível constatação de que não havia ninguém em casa. Ou estaria ele dormindo? Ou estaria morto?

Arrepiou-se com os maus pensamentos, e encostando a mão na porta, notou que não se encontrava trancada. Uma idéia saltou-lhe na mente! Deixaria o bolo e ficaria da janela assistindo a reação do homem, que devia ter ido ao mercadinho. Ele costumava ir várias vezes por dia.

Resolveu deixar o bolo em cima da mesa que avistou, assim que empurrou a porta, que rangeu ao ser empurrada com o vagar e o cuidado de quem quer entrar, sem ser notada. Desejou por algum instante poder se tornar invisível, o que facilitaria toda a operação.

Deixou o bolo sobre a mesa e massageou as mãos, que adormeciam após segurar o pesado prato por algum tempo próximo a eternidade.

Ia já virando para sair, quando um berro saiu de sua boca antes mesmo que os olhos enviassem a mensagem completa para seu cérebro.’O pânico se estabelecera. O susto e o nojo.

O homem estava nu em pelo. Pelado mesmo!

Ele esboçou um sorriso sem a metade dos dentes, e deu um passo a frente, esticando os braços.

Ela não teve dúvidas: deu meia volta e saiu gritando pela rua, o lenço caindo da cabeça, deixando à mostra o pouco cabelo que possuía:

- Ele está nu! Ele está pelado! Peladoooo!

Só parou de gritar quando conseguiu trancar a porta da sala por dentro.

Sentou-se no sofá coberto com um velho cobertor, de onde exalava um cheiro de mofo, e recostou a cabeça relembrando toda a cena. Seu amor platônico nu... Como pudera ele ser capaz de tal ato para com ela, uma donzela. Eram vizinhos de janela há vinte e cinco anos. Conheciam-se tão bem. Ao menos era o que ela pensava... Uma ânsia fez com que corresse para o banheiro e vomitasse todo o almoço bem ali na privada, marcando com o amargo líquido de seu estômago a tampa, o assento, o tapete de crochê que a Alzira havia lhe dado no último natal, quando fora enfim convidada a passar o natal na casa da irmã, que havia subido consideravelmente o nível financeiro da vida, podendo gastar uma quantia exorbitante na ceia do natal.

Pois foi ali mesmo que fez questão de derramar seu refluxo, emporcalhando o tapete. Desabafando o coração duas vezes. Pelo homem e pela irmã que lhe dera um tapete de crochê de presente, enquanto que para cunhada comprara um lindo par de brincos de pérola.

E vomitou ainda mais.

Chamou um pedreiro no mesmo dia e mandou-lhe cimentar a janela do quarto.

Era o final de um grande amor.

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