Tema 019 - FAZ DE CONTA
BIOGRAFIA
O PEIXE BAILARINO
Rosi Luna

Faz de conta que história de pescador é bem assim: você pesca uma piaba e fala que pescou um tubarão - se não aumentar, perde a graça.

Faz de conta que você pensa em aumentar a história que começou com um minúsculo peixinho e alcançou grandes proporções.

Faz de conta que chegou um peixe na sua casa, ele veio em um saco plástico e foi dado de lembrancinha em uma festa infantil. Ele é um intruso na sua vida e, apesar do seu signo ser aquário, você nunca pensou em manter peixe no cativeiro. Mas ele chegou e precisa de um lugar. Você abre todos os armários da cozinha e descobre que, em toda a sua louça, não tem nada suficientemente fundo para abrigar o novo hóspede. É tarde da noite e, já que não vai dar pra comprar um aquário a essa hora, a única saída é ir na vizinha do apartamento da frente.

A vizinha arruma um pirex verde escuro e você coloca o peixe lá dentro.

Faz de conta que o peixe corre de alegria pelo pirex, rodopia, mergulha; pra quem estava morando num saco plástico, o pirex é um verdadeiro palacete. A lembrancinha é um kit com peixe, comida e as instruções de como alimenta-lo. No fundo, você queria que não tivesse peixe algum ali, na sua frente, mas como fazer de conta que não viu a carinha de felicidade do seu filho, com seu primeiro bichinho de estimação? O jeito é encarar e tentar observar aquele peixe, e cuidar para que sua estada seja o mais agradável possível. O lugar escolhido para o pirex é em cima da sua pia, e isso quer dizer que a partir de agora nada de respingos de gordura e nem de detergente - tudo pode afetar a rotina do peixe.

Faz de conta que a sua vida, que antes era tranqüila, passa a girar em torno do peixe. Seu filho acorda falando do peixe, almoça falando do peixe e dorme querendo levar o peixe para a cama. Só se fala em peixe! E isso já dura uma semana.

Faz de conta que você acredita que não vai procurar aquário, pois você sabe que vida de peixe recluso talvez seja curta e não vale o investimento.

Faz de conta que você esqueceu o que tinha dito antes e foi na tal loja de aquário e ficou chocada com a quantidade de assessórios que o vendedor queria lhe empurrar. Era simples: aquário, pedras, luz azul, pastilhas, bomba, enfeite, papel de fundo e plantas plásticas. Quando ele traz a conta, é de quase duzentos reais. Faz de conta que você tem uma atitude imprevisível e faz uma singela pergunta:

- Quanto custa um peixe como esse aqui?- E aponta para o que seria um irmão gêmeo do que vive tranqüilamente no pirex.

- Ah! Esse peixe custa só cinqüenta centavos.

Você olha para o vendedor e argumenta:

- Quer dizer que para cuidar de um peixe de cinqüenta centavos, preciso levar toda essa parafernália caríssima?

Faz de conta que você finge não notar os olhinhos do seu filho brilharem de tristeza quando você diz que vai pensar mais um pouco e que não vai levar nada. Ainda deu tempo de perguntar ao vendedor lá em um cantinho da loja, quanto tempo de vida teria ele sem a bomba de ar.

O vendedor deu ao peixe quinze dias de vida. Em média!

Faz de conta que você passou a observá-lo todos os dias, e mesmo sem querer começou a se afeiçoar ao peixe. Ele estava ali, rodopiando na água, e quando você estava sem idéias ia lá tomar conselhos. Às vezes dividia até a solidão de algumas horas e já o sentia seu companheiro de mergulho ou de meditação profunda.

Faz de conta que você notou que tinha algo em comum com o peixe.
Quando batia uma tristeza, vocês gostavam de afundar, afundar, afundar e quando batia uma alegria, vocês gostavam de dançar. A diferença básica estava no hábitat: ele morava em um apertado pirex e você morava em um apertado apartamento.

Faz de conta que você está no computador vestida só de camiseta e calcinha e está terminando um texto importante. Seu filho, que só respira peixe faz alguns dias, lhe avisa que está na hora de alimentar o bichinho de estimação. Você pensa em não parar naquele momento, mas algo lhe impulsiona e você vai na frente e acende a luz da cozinha.

Faz de conta que você olha para o pirex e o peixe não está lá. Você dá um grito de pavor e vê o peixe todo roxo pulando no chão da cozinha.

Faz de conta que é uma cena de filme surrealista: você abre a porta do apartamento e sai gritando pela vizinha, que é supercorajosa, e nem lembra que estava vestida apenas de camiseta.

A vizinha pega o peixe com dificuldade e consegue colocá-lo de volta no pirex. Depois de tanto susto o peixe fica paralisado.

Faz de conta que você achou que ele estava morto, novos gritos de pânico até que alguém dá um tapinha de leve nele. Ele rodopia e enfim, assustado, tem uma diarréia e você vê exatos três rolinhos saindo. Não era pra menos: depois daquele susto, tinha mais é que se aliviar.

Faz de conta que sua vizinha morre de rir de ver você de calcinha.
Você ri nervosamente por não ter tido coragem de salvar sozinha seu companheiro, o bailarino das águas.

Faz de conta que dá para perceber que você parece um peixe assustado, você tem medo de muitas coisas e de muitas sensações diferentes. Os dias foram passando e você passou a respirar peixe de manhã, de tarde e de noite. A essa altura ele já era o seu bailarino preferido, pois você fica imaginando que grande salto ele deu pra pular do pirex, e mesmo assim conseguiu sobreviver.

Faz de conta que você faz um comparativo, você também dá muitos saltos pra tentar sobreviver nesse redemoinho chamado vida.

Faz de conta que você acha que tudo ia bem quando, quase nos quinze dias de pirex, o peixe começa a ficar apático e mostra sinais de cansaço evidente. Foi um domingo de terror, tudo foi feito para que ele voltasse rodopiar no seu ballet aquático. Na sua pia estão dois baldes e outro pirex...

Faz de conta que ele morre e você precisa ensinar ao seu filho a primeira sensação de perda. Você conhece tudo sobre essa sensação dura, fria e difícil, mas não tem palavras pra explicar. Chorando você arruma uma caixinha de fósforo, uma cruz feita com dois palitos de dente e convida sua vizinha para o velório do peixe. Aos prantos, você promete comprar outro peixe, mas seu filho não aceita, ele queria o "seu" peixe, aquele que jazia inerte na caixinha de fiat lux.

Faz de conta que só nessa hora você percebe que não era cinqüenta centavos o valor do peixe, era o tamanho do amor que ele tinha e que nenhuma moeda seria capaz de comprar.

Faz de conta que choveu torrencialmente e com o rostinho em lágrimas seu filho inconformado perguntou se o peixe está bem lá debaixo da árvore onde foi enterrado. Você responde que agora ele deveria estar muito bem, pois estava nadando rumo ao céu, afinal de contas, o peixe tinha se convertido ao catolicismo nos últimos minutos de vida e agora já tinha até virado peixe-anjo-nadador.

Faz de conta que passasse, no dia seguinte, um fumante e achasse aquela caixa de fósforos no chão, pois a com a chuva ela saiu da cova rasa. Imagine a cara de espanto do fumante ao abrir pensando em achar fósforo e dando de cara com um peixe morto. Ele levaria um susto tão grande que podia parar de fumar. Sem querer ser partidária da liga antitabagista; mas você ia gostar e seu amigo peixe com certeza ia rodopiar bailarino de alegria.

Faz de conta que você confessa que é da geração saúde: não bebe, não fuma e adora corpo em movimento.

Faz de conta que você imaginou tudo isso, mas que era tudo a mais pura verdade e que agora você está de camiseta e calcinha de novo. Você tem certeza de que o malandro do seu vizinho vai ficar torcendo pra você sair assustada com as pernas e a calcinha de fora.

Faz de conta que é Páscoa e você não quer comer peixe, e você promete que vai resistir aos quitutes da Inajara, mas quando você sentir aquele cheiro de tempero baiano você vai cair de boca e nem vai lembrar da promessa.

Faz de conta que amanhã você vai procurar aquário: é no jornal, na coluna de horóscopo.

Faz de conta que acredita...

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