Tema 024 - A PERFEITA SOLIDÃO
BIOGRAFIA
SE EU FOSSE UM SANHAÇO
Alberto Carmo
Mesmo tendo dormido pouco, ela sempre acordava cedo. Um sanhaço assanhado costumava bicar seu vulto na janela. Era como um beijo, um pedir, por favor, para ela acordar, espreguiçada, dengosa, espalhando perfume e beleza a bel-prazer. E o sanhaço voava solto, ligeiro, mal sabendo que aquela imagem escondia tamanha mulher. Para ele, mais uma flor arisca, endeusando as manhãs.

Mulher de infinitas manhãs, onde o sol era mais que curioso, antes guardião. Ela, ainda descalça, abria as janelas, todas, como se fossem meninas correndo até não mais poder. Como um acordar ao sabor de café no bule de ferro, e de orvalho preguiçoso, molhando os pés macios. Ela era assim, perfeita, e sonolenta, de uma voz que murmura...

Suas primeiras palavras? - Eiiiiiiiiiiiiiiiii! E bastava, para que o sol se inchasse de caloria, e as nuvens entrassem em danças de Aladim.

E se oferecia ao sol, densa, de carne felpuda, mistura de pétala e óleos de sândalos. E o sol, egoísta de tanta beleza, queimava as asas daquele pássaro que, de tanto desejo, ousava ir mais alto, enlouquecido pelo perfume dela.

Sozinha, nua de ilusões, mas plena de paraísos, muitos indecifráveis, perplexos. Ela corria os olhos em velocidades inimagináveis, como num pedido de abrigo apaixonado. Onde represar tanta vida, se tanta terra e tanto mar não a podiam acomodar?

E fugia, dia após dia, num buscar de emoções e de carinhos, mal sabendo que oferecia o mais longo dos tesouros. E era sempre tão breve, tão personagem, de cenas de aquarela. Mas sempre, sempre ela.

Nunca a vi acordar, nem plantando as mãos à terra. Mero sonho, que eu tento imitar, quando toco a água de uma nascente. Ela, tão premente em minha vida.

Se um dia pudesse apenas adormecer ao seu lado, ou se soubesse onde anda aquele andar tão largado. Se pudesse, mesmo à revelia, me entregava sem medo, escravo de sua alforria. Ainda que jamais a tivesse, eu a mim mentiria. Tão minha que jamais foi, e tão perto do meu amor.

Sonhei-a tão minha, despida de dores e ainda menina. Abraçado àquele corpo, como se fosse a primeira vez,  e perdido na felicidade.

Se ela soubesse a falta que me faz, talvez virasse garça, andorinha, ou quem sabe...

Mas ela era assim, intocada, amada, na mais perfeita solidão. E eu, sonhando aqueles olhos perfeitos, implorando ao sanhaço que me desse a mão...

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