Tema 024 - A PERFEITA SOLIDÃO
BIOGRAFIA
ANTES SÓ?...
Luís Augusto Marcelino
Romualdo se mudou para o apartamento novo em setembro de 98. Seu sonho de consumo há muitos anos. Ficar sozinho. Jogar as meias onde bem entendesse ao chegar cansado do trabalho. Ter um aparelho de TV só pra si. Assistir o telejornal. Um filme, mesa redonda de futebol, qualquer coisa que não aqueles enfadonhos programas de auditório. Abrir a geladeira sem camisa e não levar bronca. Comer um sanduíche improvisado. Tomar cinco, seis latas de cerveja. Deixar a pia molhada. Abrir a janela e ficar olhando o movimento na rua. Fumar no quarto. Ouvir música no último volume. Navegar pela internet, deixar a linha ocupada e não se preocupar com os telefonemas inconvenientes dos parentes tarde da noite. E o mais importante, afinal: ter a liberdade de ir para onde quisesse sem dar satisfações a ninguém.

Havia anos não ia ao cinema. Boliche, bilhar, roda de amigos em mesa de botequim. Nada. Abdicou de todos os prazeres da vida. Inclusive o de ficar esticado no sofá nos domingos de inverno folheando os jornais ou lendo um livro. Não. Ao invés disso, nos últimos anos tinha se dedicado integralmente aos afazeres da casa. Odiava consertar eletrônicos e encanamentos. Detestava também ir à feira e ao supermercado. Receber visitas quando estivesse lavando o carro lhe tirava o humor pelo resto da semana. Só tinha sossego quando ia para o chuveiro. Sossego entre aspas. "Tá gastando muita água!... Já vou, já vou!" Cansou dessa vidinha e alugou o apartamento na Lapa paulista. Perto de uma praça bem cuidada, meio deserta. Nas primeiras semanas, quando se cansava de ficar trancafiado, ia para a pracinha, livro na mão e diskman nos ouvidos. Noites tranqüilas - dizia.

Viveu em harmonia com sua vida ermitã durante um ano, até se cansar de ir ao cinema e de ouvir o papo furado de outros companheiros desquitados. Perdeu duas faxineiras por causa de seu desleixo incomedido. Ganhou uma úlcera monstruosa por conta do excesso de cerveja e dos sanduíches de frios, sua principal refeição durante muito tempo. Não que estivesse arrependido da separação. Mas chegou a sentir saudade da macarronada com frango que a ex fazia sempre que pedia. Chegou a lamber os beiços ao lembrar dos almoços de domingo.   Decidiu matar o desejo. Numa dessas raras sextas-feiras tranqüilas, resolveu ir fazer compras. Pegou a receita do molho num desses sites de culinária. Chegou às nove no mercado; pretendia sair meia hora depois. Não deu. Caiu uma chuva forte que o segurou. Não tinha o hábito de carregar guarda-chuva. Merda! - pensou. Tinha se programado para assistir uma reportagem sobre o Pantanal. E o toró não dava trégua. Quis arriscar e correr até o carro. Desistiu no meio do caminho. Molhou os pacotes. Uma mulher que assistira a cena sorriu.

- Molhou-se? - ela perguntou.

- É...

Acabou aceitando a carona na sombrinha da moça. Encharcou-se do mesmo jeito, mas salvou as compras. Trocaram telefone. "Posso ligar amanhã?" - ele disse. "Vou viajar. Só volto na segunda-feira." Ele chegou à quitinete e esqueceu do programa. Sentiu aquele aperto no peito tão raro. Melhor dizendo, que só sentira quando tirou Maria Rita - a ex - para dançar no baile de formatura do ginásio. Não, não podia se entregar assim tão fácil a uma paixão repentina. Afinal, conquistara a liberdade que tanto sonhara nos últimos anos. Mas logo depois pensou que não precisaria, necessariamente, casar de novo. Uma namorada sim lhe cairia bem. E, quem sabe, ela podia até fazer a macarronada que tanto desejava. Ficou aflito. Não esquecia do rosto da mulher. Nem era tão bonita assim. Parecia ter uns quarenta anos, se muito. Enquanto caminhavam até o estacionamento reparou que a mão esquerda estava livre. Tinha as pernas finas e muito brancas. Devia ter vindo direto do trabalho. Olhou para o cartão. "Angelita". "Angelita F. Gomes" - corretora de seguros. Resolveu naquele momento que não ligaria na segunda. Quinta, talvez sexta-feira. "Olha, na verdade estou te ligando porque o seguro do meu carro está vencendo... e aí eu encontrei o seu cartão e pensei que talvez você pudesse fazer um orçamento..." Aquilo parecia ridículo, coisa de adolescente. Foi dormir. A irmã tinha recomendado uma nova faxineira, que chegaria bem cedo. Quem sabe desse mais sorte dessa vez. Só que não pregava os olhos. Atrás do cartão ela anotou um número de celular. Chegou a discar o prefixo, mas depois desistiu. Quase meia-noite e nada de o sono chegar. Ligou o computador. Só o usava para controlar as contas e acessar a internet. Mas naquela noite não foi para a rede. Sentiu uma vontade inexplicável de escrever, coisa que nunca fizera antes. Digitou a primeira linha, texto sem sentido. Apagou tudo. Não conseguia expressar o que sentia. Então foi digitando Angelita várias vezes. O telefone tocou. Dois toques. Três. Quatro. Não foi atender. Que deixassem recado na secretária, porra! No mínimo era Maria Rita pedindo para levar as crianças em algum lugar. Pelo menos dinheiro ela não pedia. Pelo menos isso! Vinte minutos depois tocou novamente. Como estava perto do aparelho, resolveu atender.

- Alô?!

- Não vou mais viajar. Que tal almoçarmos amanhã?

Encontrei Romualdo ontem, cabisbaixo, na mesa de um bar na Rua Faustolo. Perguntei sobre Angelita. "Ela rouba meu espaço, Zé". Romualdo está louco para se separar de novo. Sente-se invadido. A nova mulher não liga a mínima para pia molhada. O apartamento onde vivem cheira a mofo. Tomou-lhe o computador e passa horas em chats de grupos de intelectuais que discutem filosofia, globalização e ecologia. Vendeu o aparelho de TV porque é contra "sistemas de cultura fúteis", segundo sua definição. Só vai ao cinema para assistir Woody Allen e Kurosawa.

- Não agüento mais, Zé.

- Está com saudade da vida de solteiro?

- É... mas Maria Rita fez regime, tá jeitosinha...

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