Tema 027 - LAVOU, TÁ NOVO
BIOGRAFIA
ÁGUA DE COLÔNIA - RÉQUIEM AOS IMPUROS
Alberto Carmo
Uma noite bem dormida, da meia-noite às seis, sem apnéia. Uma barba perfeita, sem escanhoar. Ao toque final, uma chapiscada com água-de-colônia. E um rosto novo em folha. Uma cara limpa. Limpa?

- Água-de-colônia! - pensei com meus botões. Segundo o dicionário: solução alcoólica de essências de bergamota, de limão e de lavanda, criada na cidade de Colônia, Alemanha, no séc. XVIII. Fiz uma contração no meu cérebro e me remeti ao século XVI. Como seria a água da colônia? - do Brasil-colônia.

Na abundância do Brasil indígena, os rios eram meio de vida, meio de transporte, meio de diversão. Índio não tinha esgoto. O ouro, que neles havia, lá ficava guardado. Índio não tinha Banco Central.

E as matas? Os índios aqui habitaram, aos milhões, durante séculos, e a mata permanecia intacta. Índio não tinha Bolsa de Commodities.

Olho o vidro de água-de-colônia e o atiro contra o espelho. - Malditos colonizadores! Maldita Europa! Malditos gregos, egípcios, judeus, romanos. Malditos povos gananciosos e sem talentos! Maldita civilização! Maldita igreja!

Tudo ia como dantes, no quartel de Abrantes, até chegarem os colonizadores e seus piores asseclas - os catequizadores. Alguns foram vítimas da antropofagia local, nada mais justo - era comer, ou ser comido. E em poucos séculos, foram todos comidos. Uns pela corja que aqui se instalou, e procriou sua raça nojenta nos úteros das índias. Outros, tiveram suas roças, seus rios, suas terras, sua cultura, sua saúde, suas crenças e seus valores, comidos pelo europeu insaciável. E a Europa, com sua aristocracia indolente, foi sendo comida pela burguesia emergente, a esta altura já contaminada pelos porcos do oriente.

Houvesse uma muralha da China, varando o Atlântico, do norte ao sul, a separar o admirável mundo novo do contaminado velho mundo. E outra semelhante no Pacífico, a preservar a paz das Américas contra a sanha dos invasores. Guerra de índio era movida por motivos bem menos ignóbeis do que a fome de ouro, que esses povos mantêm até hoje.

Encheram seus cofres com as riquezas que daqui roubaram e, em troca, deixaram isso que vivemos - essa vida de seres idiotizados, asfaltados, reféns dos seus bancos, suas lojas de departamento, seu "entertainment" de ratos. Somos todos uns patos!

Mesmo havendo tanto espaço, aglomeramo-nos em urbes, a assaltarmos uns aos outros - não passamos de punguistas, de batedores da carteira e do emprego alheio.

Onde está a água da colônia, que venha lavar todos os "ismos"? Onde, que possa apagar de nosso DNA todos os vestígios de descendência, que não seja a de puros mestiços, filhos de Tupis e Guaranis, Tamoios e Tupinambás, Bororos e Aimorés, e de tantos outros, assassinados num holocausto nunca lembrado? Porque índio não tinha mídia, nem colunas em jornais, e muito menos algum pajé, de nome Spielberg-Urso-Sentado, ou cacique Cara-de-Pau.

Será que nos virão socorrer as Sete-Quedas? Talvez ressussitem, e nos possam purificar nossos Tietês e nossos Pinheiros, para que transbordem nossas caixas d'água e nos permitam, por piedade, lavarmos nossas caras de sem-vergonhas. Ou sete quedas ainda não foram suficientes para nos mostrar o abismo em que despencamos?

À natureza, impaciente por nossa autodestruição, merecida e prematura, ainda resta alguma paciência. Porque, por incrível que pareça, serve a máxima, ainda, aos nossos rios fulgurantes:

Lavou, tá novo!

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