Tema 031 - DISFARCE
BIOGRAFIA
DOCE ALGOZ DA VIDA, REALIDADE
Samuel Silva
cinandro vestiu sua roupa de festa, a calça de linho bege, a camisa de viscose preta, calçou o mocassim de nobuque, esqueceu as meias. olhou a revista, não viu as meias na foto, mas também não conseguia ver se o modelo não as usava. o mocassim era novo, talvez machucasse um pouco o pé, colocou a meia branca recém-comprada no camelódromo. axe nas axilas. um perfuminho. se olhou no espelho, penteou os cabelos com as mãos, roeu a unha e jurou mais uma vez deixar o hábito. o rádio tocava eduardo e mônica em interpretação de uma cantora um pouco mais lenta que a original.

venília escolheu sua menor calcinha, aquela uma que, na bunda, terminava onde se poderia supor começar, um pequeno triângulo branco translúciDo, repetido à frente baixa. tirou o pequeno espelho da parede e verificou o caimento da peça na bunda. satisfeita, dependurou-o no lugar. sacou o meia-taça da sacola, vestiu, acertou os peitos nas taças, empinados, carnudos. volúpia. um suspiro quase de desalento, a fada-madrinha valisere não a transformou na gisele bundchen, mas deu sua contribuição, afinal. espalhou com cautela o perfume francês do pequeno frasco que conseguiu pegar naquela promoção: um toque atrás de cada orelha, no decote do sutiã, no umbigo. para não confundir odores, poupou o sexo e as axilas, estas polvilhadas com talco da granado. vestiu o tubinho preto, ajeitou mais uma vez os peitos, mais para cima, mais juntos. lembrou de um namorado que ria de peitos estrábicos. não era o caso dela, ele sempre disse, que não era bobo nem nada e ela tinha espelho. peitos vesgos não! deu uma rápida escovada nos cabelos agora lisos e compridos. da próxima vez ia cortar bem curtinho que nem aquela artista da tv. com certeza ia ficar mais bonita do que era e talvez até como ela, a atriz. maquiou-se e desenhou os lábios em vermelho vivo, quase purpurinado. fez caras e bocas para o espelho. se mandou beijos sedutores. calçou o sapato, salto alto empinando a bunda, curvando as costas. as horas chegavam, a amiga já devia estar esperando.

cinandro saltou do ônibus um pouco distante da boate, não queria ser visto apeando do coletivo e fez ares de portar chaves de carro no bolso da calça. celular de cartão ligado e preso no cinto, relógio chacoalhando no pulso direito. carteira gorda de cartões de crédito tumorando o bolso traseiro. contou o dinheiro, separou no outro bolso o que podia gastar, o resto era reserva de eventualidade. parou no boteco, pediu uma cerveja e um conhaque. bebeu os três copos de cerveja de um gole só cada, intercalados com goles da destilada. assim gastaria menos dentro da boate, estando já provisionado de álcool. a bebida ampara a noite. entrou como césar, vindo, vendo esperando vencer, olhar panorâmico, querendo segura indiferença, pelos corpos e rostos. viu o amigo e se juntou a ele. estratégia de cachorro selvagem africano, a caça em grupo.

venília maldisse a mãe de quem acha que pedra portuguesa é bom calçamento, o piso irregular obrigando-a a caminhar com cuidado do alto dos saltos, tentando manter a postura, tentando abafar os ruidos estridentes dos saltos e saliências. De rabo de olho olhou a amiga e o rabo dela, empinado tal qual estaria o seu, embalado em preto como o seu, protuberante e largo, quisera fosse o seu, mas não tinha dinheiro para a meia-calça com enchimento. suspiro. não seria por falta de bunda que se perderia, mais vale borogodó e o jeito certo de usar, um e outra. sorriu o sorriso de quem espera a vitória. entraram na boate, damas até meia-noite não pagam ingresso. leoa abraça a planície de caça com olhar, seleciona as presas. suas armas não são mais garras e dentes, sim bundas e peitos. como disse um anjo negro, bocas de veludo também ajudam, mas sem os dentes.

oxímoro, garçom há quarenta anos fez muxôxo ao iniciar o serviço à clientela: mais um dia na noite da savana, mais um baile de carnaval, todos vestindo fantasias mortais, disfarçados para seduzir. oxímoro casou com a miss do bairro, teve filhos. sempre se usaram disfarces, ele e a esposa também o usaram, mas já não cabem mais: os cambitos folgam nas calças, a barriga foge das camisas, a roupa de don juan ficou esquecida em algum armário do tempo.

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