Tema 032 - NA CONTRAMÃO
BIOGRAFIA
NA CALADA DA NOITE
Mariazinha Cremasco
Duas horas da manhã. Não consigo dormir. Justo hoje que deitei cedo, pois estou tão cansada. Tenho tantas coisas para fazer amanhã. Desde a meia noite estou na cama. Vou levantar. Não. Não devo. Se levantar, desperto. Desperto de quê? Ainda não dormi, nem mesmo cochilei, despertar de quê? "Amargo despertar". Belo filme. A história de um cara que tinha Mal de Parkinson. Horror, não quero me lembrar de doenças agora. É nisso que dá ficar acordada. Fico pensando bobagens. Lembrei do filme e agora estou pensando no meu tio, que está doente. Xô, pensamento. Pai nosso que está no céu, santificado seja vosso nome... devia ter comprado o lexotan. Eu prometi que não tomaria mais. Mas eu deveria ter o bendito guardado para essas ocasiões. Deveria nada. Se tivesse, não usaria nessas ocasiões. Tomaria todos os dias, como fiz durante vários anos. Esqueça. Agora não tem mais. Prometeu, tá prometido. Afinal, o que é deixar um lexotanzinho para quem conseguiu deixar dalmadorm, dormonid? Vou contar. Mil duzentos e um, mil duzentos e dois... mas que número grande. Sempre começo depois do mil, pois se começar do um parece que não dá certo. Mil duzentos e três. Na hora em que eu começar a embaralhar os números é sinal de que estou quase dormindo. Mil duzentos e quatro... houve uma época em que eu contava de cem para baixo. Noventa e nove, noventa e oito, noventa e sete... mas chegava ao um tão depressa que resolvi contar aumentando. Tem mais lógica. Amanhã preciso fazer tanta coisa na rua. Ai, que dor nos braços. Por que será que insônia dá dor nos braços? Se eu estiver nessa draga amanhã, não conseguirei fazer a metade do que tenho para fazer. Duas e quarenta e cinco. Se eu estivesse com meus amigos lá onde costumamos nos encontrar às quartas, nada estaria me doendo e amanheceria bem depressa. Mas eu nunca posso ficar até tão tarde. Pai nosso... não quero mais rezar. Não consigo mesmo. O que aconteceria se nessa hora eu pegasse o carro e saísse? Que vontade de fazer uma loucura. Imagine. Vou lá pra boca do lixo. Onde é mesmo a boca do lixo de São Paulo? Ainda deve ser na Major Sertório, na Rua Aurora, esses lados. Chego lá, onde tenha gente agrupada, provavelmente fumando maconha ou cheirando (às vezes me dá uma vontade de experimentar), paro o carro. Desço com nariz bem empinado e grito assim pra quem estiver lá: "ô seus filhos da puta! ô cambada de marginal!!!". Será que levo um tiro? Sempre tive essa curiosidade. Será que fariam alguma coisa comigo? Sabe que eu teria coragem? Ou será que ficariam meus amigos? Mas claro que não vou fazer isso. Que diriam meus filhos se eu morresse assim? Imagino a manchete no jornaleco: "jovem senhora de classe média morta a tiros (ou cortada com facas e canivetes) na boca do lixo de São Paulo". Como meus meninos explicariam que sua mãe estava num lugar daqueles, àquela hora? Pobrezinhos. Preciso pensar neles até na hora da loucura. Jamais iriam pensar "pobre mamãe, estava na contramão da noite".

Chega. Vou levantar. Vou ligar o computador, escrever uma crônica e depois, juro, vou conseguir dormir. É sempre assim.

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