Tema 032 - NA CONTRAMÃO
BIOGRAFIA
O MENINO DA CUECA AMARELA
Rosi Luna
Foi no Nordeste. Meu irmão mais velho, que é médico, foi selecionado pra ser chefe de um posto de vacinação. E adivinhem quem ele chamou pra ser sua enfermeira? Acertou se pensou em mim. Isso mesmo: eu, com essa coragem pra lidar com sangue, eu que já tinha desmaiado em duas ocasiões. Uma quando arranquei um dente de leite. Caí morta na cadeira - e depois, pra não desmaiar de novo, minha mâmi me prometeu uma Susi enfermeira. No próximo dente, virei os olhos, mas agüentei firme, pois ia perder a boneca se desmaiasse de novo. A segunda vez foi numa campanha de vacinação de pistola. Caí dura quando chegou a minha vez e pensei com meus botões infantis:

- Enfim estou livre desse tiro no meu braço.

Ao acordar, aquele monstro aplicou com toda força a vacina no meu braço esquerdo e não deu nem tempo de gritar ou desmaiar de novo.

Então, só por esses motivos, falei pro meu irmão que não podia ser sua enfermeira auxiliar, que era melhor chamar alguma colega de faculdade, ou alguém que tivesse disposição pra fazer isso. Mas não houve jeito e eu vesti uma de suas roupas brancas - que ficou parecendo um balão em mim de tão grande - e assumi minha porção Ana Nery. Fui para o que, para mim, seria uma guerra.

O posto de vacinação foi instalado numa casa muito simples, numa encosta de morro. A pobreza era vista de todos os ângulos. A vacinação era em gotas, pelo menos isso, - se fosse de pistola, eu estaria morta no primeiro disparo. A fila era de meninos pobres e barrigudinhos (sabe barriga que dá pra ter certeza de uma família de lombrigas há muito tempo instalada ali com mala e cuia?). Os meninos, em sua maioria, vinham assim catarrentos e buchudos - é assim que eles se referem às crianças lá em Recife. Mas esse menino de quem vou falar agora me chamou a atenção. Ele era bem pretinho e franzino, acho que de uns quatro anos, mas talvez tivesse mais idade, não sei dizer ao certo.

Ele veio muito perfumado e com muito talco no peito. Era tanto pó que quase ele ficou branco, como Michael Jackson. Usava apenas uma cuequinha de náilon, de um amarelo bem forte. Segurei seu rostinho e ele me abriu um sorriso lindo, de dentes de uma alvura límpida, mesmo depois de tomar aquela gota de gosto horrível.

Chegou a hora do almoço e a dona da casa, mesmo com toda a sua pobreza, nos convidou para comer uma deliciosa galinha guisada - do que, cá pra nós, não gosto muito. Mas quem sou eu para fazer uma desfeita? Comi tudo.

Gostei mesmo foi da sobremesa, doce de banana de tacho, daqueles que a pessoa mexe tanto no fogo que pode até criar músculos. Taí uma coisa que jamais me atreveria a tentar fazer: doce de banana de tacho. Fui para frente da casa passar os quinze minutos de sesta que meu irmão tinha me concedido.

E qual não foi minha surpresa ao olhar para a rua e ver o menino correndo pelado atrás de uma bola. Ainda deu tempo de ele me dar um tchauzinho. Fiquei ali, incrédula com a constatação: a cueca amarela era sua roupinha de sair. Ele tinha se arrumado todo para ir apenas se vacinar, e ao chegarem casa sua mãe dever ter tirado sua vestimenta de gala e o deixou igual aos outros, que brincavam pelados na rua.

Nunca esqueci esse garoto e desde aquela época o chamo de "menino do Candinho" ou o "menino da cueca amarela". Era esse menino, era essa pobreza que o Portinari pintou e que vi com os meus olhos de enfermeira de um dia só.

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