Tema 032 - NA CONTRAMÃO
BIOGRAFIA
DESCONSTRUÇÃO #2 - EXERCÍCIO
Samuel Silva
Beberam depois do batente, a cachaça boa descendo arredondada pelo pó de tijolo e cimento, fazendo um bolo calmante em seus estômagos e depois, contados os trocados, seguiram para a Rua da Santa, só para ver as mulheres seminuas os convidarem. "Peão só recebe cantada de mulher em boca de puteiro", disse Jesuandro enquanto ria de sua própria piada. Na rua lhe chamou a atenção uma novinha feita tímida, minisaia na cintura, a bunda quase de fora, calcinha enfiada até os dentes, um olhar abaixado que só erguia apressadamente para se fazer presente naquela vitrine de mulheres no meio-fio. Jesuandro, fosse pela pinga ou por temperamento, ria a toda hora, já agora do mirar aparvalhado do colega para a puta pequena, uma menina entrada em idade de servir. Incentivado, combinou com Jesuandro o ponto de encontro para o retorno e foi à menina e a seguiu para um lugar que no passado fora garagem de carro e se prestava bem a garagem de gente, os boxes de veículos eram cubículos de paredes de maderite e uma cama colada na parede. Em outra parede, uns pregos eram cabide. Tirou a roupa, a menina também, quadris estreitos, peitos pequenos, pele pretinha, a buceta escondida na pelagem crespa e cheia, depilada em retângulo apertado. Ela pagou com a boca ligeira, deixou-o encharcado, menina tinha aprendido a lição primeira, depois se estendeu no estrado, abriu as pernas, chamou-o de amor e o recebeu nos braços e nas pernas. Ele se fartou meio enfarado, algo angustiado mas não sabia porque, gozou gozado, sem graça, pagou apressado e saiu. Achou Jesuandro brincando com uma mulher, coisas de criança, mão nos peitos, foram embora. No caminho lembrou o desconforto: a menina lhe pareceu a filha, uma amiga da filha, uma menina, mesmo.

O cara estava lá estendido, morto como convém a um cadáver, e já ia se juntando aquele bando de urubus modernos, transeuntes curiosos e pouco caridosos que se achegam a um sinistro para ver miolos, sangue, carne e ossos. Jesuandro desceu correndo a escada ainda apenas em cimento, meio agachado para manter o equilíbrio e as mãos o mais próximo possível do único apoio que teria em caso de querer cair o corpo pelas beiras da descida, a própria escada incompleta, levantando pó de cimento, escorregando em pedriscos vários. Via do alto cada vez mais perto o cadáver operário e a multidão crescente e as buzinas que já começavam a colorir a rua em riscos agudos horizontais, pensando ainda na vida que tinha que levar, a boca cheia de cascas de feijão que ia tirando dos dentes e entredentes com a língua. Em casa abriu a porta do quarto, viu a mulher dormindo na cama, a filha esticada no colchonete no chão, não quis beijar uma ou outra, a dor doída assombrava seu coração, foi para a sala acanhada, dormiu sentado até o amanhã.

Cedo, antes do sol, bebeu o café, comeu o pão, pegou a marmita e beijou a boca da sua mulher sozinha no quarto, beijou o pescoço, beijou a nuca, beijou cada mamilo retendo o bico nos dentes um pouco, a mulher se fingindo dormida naquela brincadeira nova de coisas antigas e ele seguiu beijando por baixo da camisa de promoção de candidato a deputado, as dobras do ventre, o umbigo, beijos os lábios dela como se beijasse a bocadela, no cio, remexendo a língua no remelexo dos quadris dela até sentir estremecida e molhada e ver, mais acima, o sorriso satisfeito, quase infantil, da mulher.E, limpando os dentes fiapados, beijou a cabecinha do filho, distraído vendo a angélica, nem olhou para a filha, menina. Pegou ônibus, sol nascendo, depois o trem e depois o õnibus depois, orgulhoso de ser trabalhador sem preguiça e sem medo.

Em frente à obra apeou e esperou fechar o sinal da esquina para atravessar a rua ainda deserta e escura nas sombras dos grandes prédios entre os quais despontaria aquele que ajudava a surgir, timidamente inconsciente de que o arranha-céu era seu dedo apontado para Deus.

Entrou ao apito do início do expediente, sete horas de patrão, quinze minutos antes das sete horas da igreja, a marmita ainda quente no sovaco, a mente absorta, imersa nas coxas da mulher e no entrepernas da menina da noite anterior, nem respondeu aos cumprimentos dos colegas enquanto subia pelo elevador de carga até lá em cima, sem medo, inconsciente de que arranhava o céu com seu boné de brinde de candidato a vereador. No último piso deixou sua marmita e começou a trabalhar, Jesuandro entregava o tijolo e ele o assentava em carreiras firmes, geométricas, tão certo que o nível e o prumo se acovardavam de desmenti-lo, operário sem preguiça nem medo, pura perícia sem estudo, montando um mundo equilibrado, com cada coisa em seu lugar, sem arestas, sem eiras nem beiras. Um grande quadrado, quatro ângulos retos de paredes retas.

A lembrança da menina sob seu peso, dizendo vai, dizendo amor, se embaralhava com a memória de sua mulher dizendo sim jurando amor e se confundia com a imagem de sua filha dizendo vem, dizendo amar, e toda a sua vida se misturando com o cimento da vida e as lágrimas dos sentimentos, como se estas dessem o maior significado e sentido àquele.

A dor no peito, o cimento, as lágrimas, as mulheres todas, meninas, moças, maduras e velhas...Ele se sentou, as costas apoiadas no ar pois a parede ainda não secara, as mães estendidas para atrás em apoio. Olhou para o céu, um céu azul escuro, pesado, para as aranhas e pratos das antenas de tv espalhadas pelos outros telhados à volta da obra. Viu-se em parque, antenas como árvores, arbustos; queria ser mais novo para bater uma pelada naquele campo alto, estruturas virando traves de gol. Respirou fundo, como lhe ensinara aquele moço do hospital, pensou em Deus. Trabalhou com tijolos, cimento e lágrimas.

Trabalhou a quase esgotar-se e a fome bateu-lhe no estômago. Jesuandro ligou o fogareirinho, esquentaram as marmitas. Jesuandro contava piadas, a boca cheia de macarrão, quetichupe de saquinho roubado da lanchonete sujando a camisa de time. Uma anedota aqui, outra ali, alguém fala do dissídio que ia ser melhor, ouvira do homem do sindicato, barbudinho aviadado. A notícia de um princípio que queria ser modess. Algumas cervejinhas rápidas para que o feitor não flagrasse e viesse falar em acidentes de trabalho. Jesuandro imitou a menina da festa de um sábado, rebolando esquisito, duro, homem caricaturando mulher, um outro levando a música com percussão de tampa de marmita, saco de cimento. E todos riam, e entoavam o coro e ele animou-se a dançar e dançou como em uma valsa, a menina, a mulher nos braços, rodopiava e uma hora via uma, outra, a outra.

Tropeçou na colher de pedreiro, curvou-se para frente buscando ar e equilíbrio, faltou-lhe a parede que erguia e ele se viu parado no tempo e no espaço, como assistindo tv em câmara lenta, o céu em cima, embaixo, de cada lado.

E depois o negro calor do asfalto.

Jesuandro chegou ao lado do companheiro de tantas paredes e zonas, mas ele não estava mais lá, fora com um suspiro e deixara de lembrança um saco de cimento molhado de tinta rubra, as pessoas paravam, olhavam, perguntavam quem era, como foi e seguiam reclamando do contratempo, as buzinas fazendo coro, carros engarrafados, reclamando do que caiu na contramão.

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