Tema 034 - LABIRINTO
Índice de Autores
A ARTE DE EMBALSAMAR
Fernando Borba

Enildo tomou um bisturi novo, fez outro corte no plexo do cadáver e espalhou um pouco de natrum com a espátula fina. Manejando a pinça com algodão, limpou o excesso de líquido e disfarçou o corte. Tinha-lhe parecido que aquela parte não estava bem conservada; sentia o leve cheiro conhecido. Fez a última aplicação de bálsamo e contemplou o trabalho. Estava perfeito. Apesar da antipatia de Honorina, chamou-a para ver a embalsamação.

Vinham raros corpos hoje em dia. Acidentes graves com pessoas queridas (embora bastasse a tantas famílias manter o esquife cerrado). Gente importante, cujo tempo de velório seria longo. Estrangeiros que devessem partir para lugares distantes. Ou casos de grande amor, de capricho final.

Era o corpo de uma mulher madura. Enildo lhe arranjou os cabelos ainda fartos, lavando-os e aplicando a tintura castanho-escura. Desmanchou-lhe o ricto da boca, que agora estava tranqüila e natural, esboçando quase um sorriso. Pelos lábios entreabertos apareciam os incisivos brilhantes. Pequenas rugas aos cantos dos olhos foram eliminadas. O rosto recebeu uma maquiagem discreta. O queixo erguido conferia um ar de nobreza, de autoconfiança. As pernas foram depiladas, as mãos tratadas, as unhas polidas.

Honorina examinou todo o corpo e balançou a cabeça, aprovadoramente. Quando parecia satisfeita com a inspeção, apontou com movimento fugidio o antebraço esquerdo. Havia uma estreita mancha, quase invisível, que ia morrer sob o cotovelo. Tornou a balançar a cabeça - e esse gesto ambíguo tanto podia desculpar a falha de Enildo como lhe desferir mortal ironia.

Voltando as costas ao cadáver, Honorina foi para seu armário. Continuou a arrumação dos frascos, dos cadinhos, das espátulas. Conferiu o garrafão de natrum e sopesou as cubas de benjoim, de alfazema, dos demais pós aromáticos. Recontou os estiletes no escaninho. Encontrou ali o ofício da Direção Geral e o releu.

"... data em que Vossa Senhoria deverá ser aposentada compulsoriamente do cargo que tão competentemente vem exercendo há mais de cinqüenta anos com denodado esforço e extrema dedicação, pelo que..."

Tremeu de ódio. Lançou o olhar até Enildo, que curvado sobre o antebraço do cadáver voltara a trabalhar.

"... e ao mesmo tempo esse laboratório será desativado, devendo Vossa Senhoria fazer a entrega das chaves e demais pertences..."

Sabia que o colega recebera idêntico comunicado, mas nada lhe confiara. Completavam o mesmo tempo de serviço e tinham a mesma idade; haviam começado a trabalhar juntos. Nunca faltaram um dia sequer e desprezaram ambos as férias, as licenças-prêmio. Estavam empatados, também, com o mesmo número de corpos embalsamados.

"Nunca. Sou a melhor. Só saio com mais serviço. Cachorros." Pensava nos anos todos em que suplantara Enildo na perfeição dos trabalhos. Uma espuma branca começou a escorrer-lhe pelo canto da boca e um esgar lhe contraiu as feições.

Foi despertada de suas lembranças pelos movimentos de Josué, o servente. O rapaz era a única fonte de som no laboratório. Gostava de cantarolar, mas emudecia ao receber a reprimenda de Honorina. Procurava conversar com Enildo - e logo desanimava, ante os monossílabos contrafeitos do velho. Sentado à mesa outrora branca, Josué começou a ler o jornal. Mosquitos zumbiam-lhe em torno do nariz, e ele os espantava com vigorosas patadas no ar.

Honorina escolheu uns potes e instrumentos, e fechou a portinhola do armário com um golpe da mão. Foi até o congelador, na outra extremidade do laboratório, retirou uma perna e a colocou sobre a mesa de mármore. O membro, serrado acima dos maléolos e abaixo do joelho, era magro, longo e estreito. Há tempos que Honorina o manuseava, entregue à sua experiência: combinando o carbonato de sódio com outros compostos, criara uma substância nova a que chamou de honoratrum. Sua ação permitia conservar tenra a peça embalsamada, com a pigmentação natural e o colorido vivo. Escondia de Enildo a descoberta. Quando Josué, sem pensar, aproximava-se da mesa, recebia um rosnado violento e um olhar feroz. O rapaz fugia, apavorado.

Com uma seringa, Honorina aplicava o fluido em pequenas partes da musculatura e espalhava depois os manipulados em pó. Tombou de sua mão a espátula, ela explodiu um impropério. Josué levantou e veio, pressuroso; ela atirou-lhe com toda a força um pote de pedra, que foi se estilhaçar na parede azulejada. O cheiro de tomilho inundou o laboratório mergulhado em ódio e terror.

Ao fim do expediente, veio o carro apanhar a embalsamada. Enildo fez a entrega, recolheu os papéis do recibo em sua gaveta e saiu. A noite caíra. Josué despediu-se e seguiu Enildo porta afora. Honorina sentou numa cadeira e contemplou as próprias mãos quase mumificadas pela alquimia de seu ofício. Ficou a olhar esgazeada o espaço.

Quando a madrugada passou, a mesa de mármore estava lavada, tendo ao lado o carrinho com a caixa de instrumentos, os potes, os frascos, os boiões de algodão e gaze. Arrumar tudo era serviço habitual de Josué, quando havia serviço. "Mas hoje está dispensado", calculou Honorina, que se colocou junto da porta com a tranca de ferro na mão. "Hoje eu vou dispensá-lo. Para sempre" - e as rugas de seu rosto se moveram numa imitação de sorriso. Abafou um pigarro e apertou a barra de ferro, ao imaginar passos do outro lado da porta, mas ninguém apareceu. Esperou paciente as horas. imagens começaram a voltar de um passado morto.

"Meu primeiro serviço foi também um jovem. Eu chorei no princípio, de boba. Mas arrumei os ossinhos quebrados do rosto, costurei os lábios. O nariz todo acabado no acidente, tive de refazer com um pedaço tirado da coxa. A carne era tão branquinha."

Cenas aconteciam-lhe na memória, como um filme cinzento. Lembrou um caso em que tinha sido difícil emendar o crânio, partido em dois hemisférios. Resolveu ter cuidado para não golpear Josué com muita força.

"Depois recebi serviços de todas as idades. Meu pai foi Enildo quem fez. Em troca, eu fiz o pai e a mãe dele. Aos poucos, perdi todos os melindres. Quantos anos já! Vamos ficando endurecidos, sem emoção... Acho que o natrum penetra na pele e na alma da gente".

Trabalhando juntos, Honorina e Enildo disputavam e eram requestados. Os melhores do mundo, havia quem dissesse. Certa vez vieram buscá-los para um serviço especial. Queriam esconder marcas de tortura, Honorina logo percebeu. "Enildo aceitou, de covarde. Eu expulsei aos empurrões o sujeito fardado."

Estranhou a ausência de Josué, sendo tão tarde. Descurou a espreita da porta e foi olhar as substâncias. Cheirou os bálsamos e testou, rilhando os dedos um contra o outro, a consistência dos líquidos. Tudo estava pronto. Havia um galão de honoratrum como que presidindo os outros objetos. Nunca mais a antiga rigidez, pensou, aquela mumificação, a cor cerácea. Com o derradeiro serviço, iria coroar de glória toda a sua vida. "O rapaz vai ficar bonito".

Ouviu um rumor na maçaneta e voltou, apressando os passos. Ao tocar na porta, esta se abriu e o vigilante da manhã meteu a cabeça: "Veio trabalhar no feriado, dona Honorina?"

Parou, abismada. Fez um sinal, despachando o homem, e trancou a porta. "Feriado. Como fui esquecer? Agora não há mais tempo. Amanhã estarei aposentada, o laboratório extinto, não vão sequer me deixar entrar". Sentou na cadeira e prendeu a cabeça entre as mãos.

A claridade da manhã atravessava as altas janelas e brilhava nos vidros, nos metais. Uma réstia de luz disparada desde o céu apontava os instrumentos ao lado da mesa. Todo o cenário tinha um ar digno, como se o laboratório se tivesse transfigurado para receber um ritual solene. Honorina ergueu os olhos e abarcou o recanto em que costumava trabalhar, até então humilde e simples - parecia agora uma capela-mor, onde o mármore da mesa se elevava como um crisol sagrado.

Fez a última revisão.

Libertou-se das roupas e foi para a mesa, alçando-se devagar, em movimentos prudentes. Certificou-se de que podia alcançar os instrumentos, os potes.

Começou pelos pés. As primeiras incisões foram mais dolorosas do que esperava, circundando os calcanhares, subindo no rumo das panturrilhas. Aplicando o pó de alúmen, estancava os filetes que teimavam em brotar. Logo, uma dor mais viva, surgida pela injeção dos líquidos, fazia esquecer a lancinante pontada dos cortes. Quando terminou com as pernas, Honorina teve forças para sorrir, ao perceber que já não doíam. Terminou devagar com o ventre, que se rebelava, em espasmos. Chegada a vez do sexo, hesitou, quase cedeu à tentação de abandonar tudo. A dor fazia-a apertar os maxilares até quase despedaçar os dentes; mas venceu, e a embalsamação continuou.

"Devia ter preparado mais honoratrum, a consistência é leve, é mais volátil. Onde está o diabo da cânfora?"

Estirada na mesa, Honorina testou a própria maciez, experimentou o deslizar dos bálsamos na pele, avaliou a nova trama de seus tecidos. Nunca mais as rugas, cotovelos coriáceos, queixo áspero. Construía sua juventude passo a passo. Sentiu, como nunca ninguém havia sentido, o orgulho de se fazer eterna. Contemplou a própria imortalidade desde um ponto situado muito antes: havia recuado no tempo para se imobilizar, e de lá retornava jovem, elástica, bonita. "Enildo vai me convidar para sair". Levantou a cabeça e procurou olhar-se como num espelho nas vidraças do armário. O pêndulo do relógio ritmava mais alegre na solidão do laboratório.

O braço esquerdo já pronto repousou sobre o ventre. A mão se abandonou ali, numa curva graciosa. Ocorreu-lhe o problema de entrelaçar as mãos, na postura clássica, quando acabasse o serviço. Riu ainda.

Feito o trabalho dos seios, eles se elevaram rijos, os mamilos se destacando róseos, coroando a curvatura sensual. Com uma bandagem embebida em alfazema, perfumou-os, acariciando-os devagar, lembrando um tempo distante. "Enildo era um meninote muito tímido, encarava meus seios estufando a blusinha de cambraia e engolia em seco, desviando os olhos".

Sentiu fortes pontadas nas têmporas. Aconteceu uma vertigem e passou. Teve um tremor quando encheu a seringa e tateou-se em busca das carótidas. Injetou lentamente, sentindo um riacho de fogo romper as artérias. Um descomunal sino de bronze começou a tocar na noite, e suas batidas eram pulsações de luz que percutiam nas retinas. "Com muito prazer", pensou. "Aceitaria jantar com você".

Rosas amarelas se destacaram do teto e vieram desfolhar-se na mesa. Uma névoa adensou-se, mãos lentas afagaram seus cabelos, estrelas dançavam pela sala e explodiam em seu rosto com estalidos de beijos. A convulsão de seu corpo era como um bonde atravessando desvios de trilhos em subúrbios arruinados. Sentada no banco de pinho-de-riga, uma menina via deslizarem poças enlameadas de chuva e tinha medo de morrer. De repente o sino emudeceu, o tremor acabou, o rumor do pêndulo ocupou o silêncio do laboratório.

Honorina soltou a seringa, que rolou sobre seu colo, escorregou pela mesa e caiu no chão.
Protegido de acordo com a Lei dos Direitos Autorais - Não reproduza o texto acima sem a expressa autorização do autor