Tema 034 - LABIRINTO
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LABIRINTO
Samuel Silva

Como cheguei até aqui?

Nasci filho do amor selvagem de uma rainha e um touro divino, criado pelo próprio Deus do Mar? Na verdade, não. Nasci do ventre de uma humilde doméstica seduzida pelo filho mais velho, mais forte, mais bonito e mais atoleimado do patrão, sujeito razoavelmente bem de vida, extremamente conservador, tradicionalíssimo, baluarte da moral cristã e da cívica ultracapitalista. Forte como um touro, dizia minha mãe, tinha a pele muito branca de não tomar sol, de dia enfiado em academias, de noite treinando para maratonas pelas ruas e morros da cidade. De tão saudável, uma vez se deixou embebedar pelo irmão mais novo, mais fraco, mais feio, um ladino alcoólatra de sentimentos vingativos que tudo tramou para levar a desgraça a meu pai, minha mãe a reboque.

Fui criado em internato, pois minha mãe não tinha mais família além da do patrão e esta não queria saber do pequeno e horrendo subproduto da união da sem-vergonhice de minha mãe e a química hormonal-alcoólica de meu pai. Era como um orfanato, só que eu não era órfão, apenas enjeitado pelo defeito congênito de ser filho de meu pai e genético de ser filho de minha mãe. Minha pele era escura, minha cabeça grande e chata, meus olhos bovinos, corpo robusto; os primeiros predicados são de origem materna, os demais, paterna.

O internato era dirigido por religiosos muito pios, instalado longe de minha casa quase no alto de um morro. Era uma mistura de construções antigas e novas, com muitos acréscimos e consertos em não muito boa obediência aos ditames da engenharia e aos conselhos da arquitetura, de modo que os seus diversos pavilhões eram construídos uns ao lado dos outros, uns andares sobre os outros, de tal modo que se podia entrar por um edifício, subir uma escadaria, virar para um lado e descer em outro edifício onde sequer se podia ver aquele de entrada.

Dizia-se que fora proposital tão confusa disposição de prédios e cômodos, para que se tornasse impossível ao interno sair sem a necessária autorização superior que franquearia um dos religiosos que nos guiasse para fora, porque somente com anos de estudo se poderia encontrar algum caminho naqueles caminhos. Se era essa a intenção, jamais se alcançou sucesso igual em coisa alguma já feita nesse mundo de Deus.

O dia-a-dia era o mesmo, com pequenas diferenças de acordo com a idade e o nível escolar do interno, mas resumia-se a estudos massacrantes, rezas entediantes e exercícios físicos extenuantes. O único momento em que se podia desfrutar alguma distração eram os banhos e a hora da novela das oito, após a janta.

Os banhos eram realmente prazeirosos, num grande congraçamento entre os alunos e os irmãos, embora normalmente um irmão congraçasse com mais de um interno mas um interno não o fazia com outro, exceto às escondidas. E também não devíamos falar com os de fora sobre esses ritos, nos explicaram os irmãos, porque era um mistério gozoso, do que não duvidávamos, absolutamente! Todas as tensões do nosso dia eram extraídas de nossos corpos e mentes e em seu lugar os religiosos com os quais congraçávamos colocavam sensações relaxantes ou nós davamo-lhes tais, de modo que não importa se dando ou recebendo, o resultado era sempre um incrível sentimento de bem estar, ainda que no princípio alguns mais indisciplinados tenham resistido a participar do ritual, mas estes ou acabaram cedendo e se temperando ou foram mandados embora na calada da noite, acobertados pela escuridão e pelo silêncio, pois nunca mais ouvimos falar deles.

Às vezes minha mãe me visitava e a cada vez eu a via mudada, notando o quanto o tempo e o trabalho a consumiam e nestas ocasiões ela sempre me falava de meu pai e me admoestava contra certas coisas do sexo, como a tendência animal de seduzir as mulheres e abandoná-las à sua própria má-sorte, embora ressalvasse não ter sido isso que meu pai fez, já que ele permitira que ela permanecesse trabalhando na casa dele, mas que eu deveria cuidar de saber afastar de mim o animal que em mim crescia e eu pude constatar a verdade das palavras da minha mãe porque uma parte de mim cresceu quando ela começou a me abraçar com força e senti o seu corpo muito junto do meu e tive que congraçar para conseguir conciliar o sono. Felizmente, um colega de turma e alojamento se dispôs a me auxiliar no mister e muito grato fui, em outras ocasiões.

Eu cresci e um dia me foi dado sair do internato tendo como bagagem uma muda de roupa e alguns livros de estudo e um de rezas. Fui para a cidade onde morava minha mãe mas por mais que eu tentasse não consegui encontrar a casa de meu pai, tantos e tantos caminhos existiam na cidade e se cruzavam, muito mais complicados do que aqueles do internato e muitos dias perdi, aqui e ali, perguntando a uns e a outros onde era a casa de minha mãe, que era de fato a casa de meu pai. Sentia-me perdido entre tantas avenidas, ruas, ruelas, vielas, planos e morros, gente apressada a pé e gente apressada de carro e eu sem entender porque os que estavam de carro eram tão ou mais apressados que os a pé se podiam andar mais rápido e percorrer maiores distâncias em menos tempo?

Nessa minha busca dedicada e disciplinada, acabei por conhecer um homem bom que me ajudou. Me disse não saber da casa de minha mãe nem de meu pai mas que sabia como conseguir um meio de eu alcançar este conhecimento. Por um momento temi ser enganado mas ele foi tão seguro em dizer que eu só chegaria a casa de meu pai se fosse por ele e então eu o segui, enquanto subiamos um morro coberto de ruas, vielas e casas, empilhadas umas ao lado de outras, umas em cima das outras e eu me considerei consolado por ver algo parecido com o que eu estava acostumado.

Tão agradecido fiquei ao homem que quis congraçar-me com ele mas acho que ele não conhecia os ritos, pois me repeliu, com um riso estranho, como quem ri de uma barata esmagada pela sola do sapato, e me disse que eu deveria aprender a ganhar a vida de outro modo, como um homem e me propôs que eu o ajudasse em seu trabalho, que era levar coisas desejadas às pessoas que as desejavam e assim eu fiz, garantindo-me ele que nessa faina eu acabaria por conhecer a casa de minha mãe que era a casa de meu pai, porque se andava muito pela cidade levando coisas do morro para todos os cantos.

Não tive qualquer problema no início em levar as coisas, que eram pacotes que se podia carregar na mão mas o homem insistia em que eu deveria escondê-los, para que não molhassem na chuva em ressecassem ao sol nem fossem vistos por quem não era conhecedor daquelas coisas e fui entendendo como aprendera muito da vida no internato, porque aqui também existiam mistérios e ritos, ainda que não visse algo como o congraçamento.

Um dia, no entanto, muitos homens me pegaram pelos braços, me fizeram ajoelhar na rua, tiraram-me os pacotes, gritando e xingando a minha e minha mãe, coitada!, que não merecia ser chamada do que foi por aqueles homens; eu tinha aprendido já os significados das palavras grandes e não era certo o que fizeram, mas não pude reagir e mesmo gritar só por alguns minutos pois senti uma dor na cabeça, como se houvesse batido no chão ou parede, e tudo escureceu.

Acordei num lugar imundo, escuro, tão escuro que eu não conseguia ver o que me machucava, ora coisas duras mas macias, ora coisas duras-duras, e fizeram algo parecido com o congraçamento, mas sem a observância dos rituais, do Momento de Aquiescência, da Reciprocidade; foi ruim, muito ruim. Fiquei lá, assim, até que um dia o senhor chegou, doutor; o senhor é médico?

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