Tema 034 - LABIRINTO
Índice de Autores
BECOS OCULTOS
Tarciso Oliveira

George levantou-se e, ainda atordoado, levou a mão à cabeça e a trouxe de volta ao seu campo visual. Um filete de sangue grosso escorreu por entre os seus dedos. Involuntariamente limpou a mão na parte interna do seu casaco e girou o corpo, lentamente, 360 graus visando o reconhecimento do lugar. A cabeça doía. O pequeno ferimento do lado direito da testa pulsava como se tivesse vida própria. Não reconhecera aquele lugar que ora se encontrava e, inexplicavelmente, não se lembrava como chegara ali. Mas sabia que não poderia permanecer parado, deveria manter-se em movimento, mesmo sem saber a origem desse impulso. Não sabia o porquê, contudo sentia vontade de sair dali em disparada, deveria seguir em frente a qualquer custo.

Aquele beco repugnante causava-lhe náuseas. Um conglomerado de escombro e lixo que o rodeava exalava odores repulsivos. Restos de comida e detritos de esgoto se espalhavam pelos cantos do muro e do velho prédio ao lado. Alguns sacos plásticos com conteúdo a mostra completavam a paisagem. As paredes do prédio sobressaíam-se com suas intensas manchas esverdeadas, deixando claramente se ver que nunca recebera uma demão de tinta desde sua construção. Ele detestava aquilo! Sempre odiou a sujeira e a pobreza. Evitava ao máximo qualquer contato com ambientes da periferia e, agora, estava ali. Não conseguia acreditar.

Ao mesmo tempo em que tentava limpar os sapatos sujos de uma meleca indescritível, George virou a esquina e iniciou uma desabalada carreira. Enquanto corria olhava para trás, como se procurasse algo o perseguindo. Excetuando a mancha de sangue que maculava a parte interna do casaco, podia-se dizer que ele estava muito bem trajado e limpo. Com certeza, não poderia ser confundido com um meliante qualquer, mesmo incorrendo em atividade razoavelmente suspeita.

Subitamente, George pára. Olha ao redor de si mais uma vez e percebe algo estranho: não vira ninguém desde que se levantara no primeiro beco. Agora estava numa rua mais larga que a inicial, mas ainda poderia ser considerada uma ruela. Verifica surpreso, a alguns metros de onde se encontra, duas pernas, nuas, sujas de sangue coagulado, saindo por entre um monte de lixo coberto por umas faixas de plástico preto. Decide, então bater na porta de um sobrado aparentemente abandonado. Tempo perdido. Ninguém aparece. Um ruído próximo chama-lhe a atenção. Ele volta-se e vê um gato no topo de um amontoado de lixo com uma ratazana presa na boca, ainda estrebuchando. Outros ratos fogem de um buraco próximo para o outro lado da viela tentando escapar do predador. Consulta o relógio, apenas dez minutos são passados depois das dez da manhã. Ele tem a certeza de que algo muito estranho está se passando, mas não consegue decifrar o que é.

Cruza uma rua, outra e mais outra. Parece que todas são iguais. Por mais que corra, não consegue se distanciar da imundície daqueles becos sujos. Tem a impressão de que esteve andando em círculos por horas. Desejou intimamente um fio de Ariadne para ajuda-lo a abandonar aquele lugar fétido e feio. Senta-se sobre um caixote velho, que outrora abrigara algumas viçosas maçãs. As idéias que fluem não têm nexo naquele momento, talvez devido ao cansaço. Levanta-se e decide continuar seguindo em frente em busca de uma saída, qualquer saída. Cansado, enfim, pára mais uma vez e recosta-se sobre o muro sujo que lhe lembra o primeiro que encontrara naquele terrível dia. Sente as batatas das pernas tremerem. Fecha os olhos involuntariamente e vai deixando o corpo deslizar devagar, para baixo e sobre os entulhos. Está muito cansado. Não sabe como chegou ali e nem como sair. Sente-se perdido e acuado. Chora, mas é um choro fraco, sem nenhum vigor, está exausto. Então, dorme.

A claridade intensa não permite que George abra os olhos de uma única vez. Aos poucos vai enxergando com maior nitidez cada face que o contempla. Um círculo em sua volta, de caras e bocas desconhecidas. De repente, ainda tonto, escuta um forte ruído de aplausos. Todas aquelas pessoas em sua volta sorriem para ele. E aplaudem, aplaudem em demasia. Ainda sente uma forte dor na parte frontal da cabeça, mas está com a parte posterior apoiada em algo macio. Enquanto observa as pessoas acima, vê um rosto que cresce diante de seus olhos, e reconhece imediatamente: é sua esposa. Ela sorri. E é para ele um sorriso esclarecedor. Ele lembra-se então do tombo que levara à entrada da loja de conveniências, nas proximidades de sua casa, e batera com a cabeça na quina da porta.

Ele levanta-se, beija a esposa e enxuga-lhe as lágrimas que teimam em escorrer da sua face. Foram os cinco minutos mais trágicos que ela passara desde que casou com George. Para ele, também não foi fácil. Talvez, naquele breve momento, ele tenha descoberto todos os seus medos e revoltas que nunca tivera tempo de parar para refletir. Existia um mundo em sua volta e ele nunca vira. Nunca parara para pensar no assunto. E agora, depois de uma pequena amostra, enquanto estava preso nos labirintos dos seus mais recônditos medos, despertara. A partir daquele dia ele tentaria mudar.

Protegido de acordo com a Lei dos Direitos Autorais - Não reproduza o texto acima sem a expressa autorização do autor