UBIQÜITÁRIA
May Parreira e Ferreira
 
 
Então acordei como faço todos os dias nas manhãs do Cerrado. Alguma coisa me pareceu inusual, sensação de déjà-vu, imagens sobrepostas, embriaguez desapropositada. Estava aqui, estava lá, duas de mim ao mesmo tempo, lugares diversos, afazeres distintos. Uma sonolenta e mandrana se espreguiçando igual gata. Outra ligeira, já saltando da cama, bomdiabomdia. Eu achando melhor ficar quietinha, e eu já descendo as escadas, tomando café amargo antes das sete da manhã. O despertador tocando baixinho, a música, Deve ser sonho, penso enquanto pergunto ao meu marido se nota algo de diferente, Como assim, diferente, pergunta, Nada não, acho que tive um pesadelo. Não, não é pesadelo, estava preparando a mesa do café para a filha que vai trabalhar, e me preocupando em esquentar bem o leite porque São Paulo nesta época do ano é fria e cinzenta, e sair aquecido de casa faz a gente querer voltar. E preparando o café para o homem-bandeirante a caminho do trabalho. Estava aqui e lá, duas de mim simultâneas.

Geminianos conseguem fazer duas coisas ao mesmo tempo, mas estar em dois lugares? Aos poucos me acostumei com a situação, corcunda sabe como se deita, e hoje já não estranho tanto. Enquanto bato um suco de acerolas recém-apanhadas no meu quintal mineiro, enfrento o trânsito paulistano para chegar ao Parque do Ibirapuera onde farei minha corrida diária. Na mesma manhã, sem pressa, cuido das flores, abro a caixa de correio eletrônico, respondo aos amigos, faço o almoço, e estou distraída no trânsito pesado ouvindo jazz na rádio, voltando para casa sem tempo de almoçar, o trabalho como psicanalista consumindo o dia. Em casa mineira, trabalho com palavras igualmente, mas escritas. É tão rápido, tão mágico. Faço bolo de macaxeira, sagu de laranja e coalhada. O dono da horta está também planta flores. Minha mesa de centro, exibe um lindo e colorido arranjo de bocas-de-leão mais floresinhas de mostarda da roça.

Em São Paulo vou ao cinema, filmes franceses, iranianos, vou ao teatro Nô, vinte e cinco de março, comida coreana, Estação da Luz. Amigos, reuniões, encontros literários, vinho no almoço da mercearia, jantar no japonês. Uberlândia de céu violáceo, quitandas maravilhosas, longos caminhares na beira do rio, chopp a zero grau. Uma de mim tem medo de assalto, anda com vidro do carro fechado, bolsa pequenina só com cópia de documento. Minha sósia tem medo do grito noturno do rasga-mortalha, passeia de scooter com cesto de palha atrelado à bagageira, compra queijo na fazenda e faz regime de engorda. Uma, implicando com ordem na casa, controlando lâmpadas e banhos, cuidando de contas e picuinhas familiares, não vê a hora de exausta poder dormir. Outra se diverte com o canto dos pássaros, os chamegos da gatinha soberana ronronando ao sol da tarde, as auroras reluzentes. Massagem nos pés, vinhos encorpados. O charme das velas ao anoitecer.

Ao jardim de Sampa sou grata por me ter ensinado ser paciente e perseverante. O quintal de Udi agradece, retribuindo com generosidade tudo o que aprendi. Pedaços duplicados de mim, esquizofrênicos vão vivendo. Pode ser que tudo não passe de fase do climatério, apontando suas primícias. Mas a saúde é mantida, as taxas de colesterol estão perfeitas e a pressão abaixo do normal, sinal de longevidade, ái meus áis, viver muito, nem precisa ser duplamente, é muito solitário.

Sinto-me exaurida, mas tanto lá como cá, ou o contrário, sou duas atarefadas, duas felizes e ambas agoniadas por não serem uma só.

 
 
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