AVESSO
Rosi Luna
 
 
Olhe para esta letra "i" e pense que o pinguinho caiu. Olha ele aqui: "." Olhe para esse "W" e pense que é um "M" que está de pernas pra cima. Olhe pra esse "E" e pense que ele perdeu um tracinho e virou um "F". Penso tanto em mudanças, quero trocar tudo que é regra.

Agora você deve estar imaginando o que eu quero dizer com isso. Quero dizer que os pingos estão nos "is" desde a minha alfabetização. Tá certo que de vez em quando esquecia um. E a professora falava "tá faltando o pingo". E se eu não quisesse colocar?

Tenho o direito de defender a letra "i" - ela é a única que já nasceu com um acento permanente. Aprendi o "a, e, i, o, u". Sempre fui de questionar as coisas e sentia o "i" marginalizado. Nenhuma das letras tinha pingos. Com o tempo, achei que eu era diferente. Me achei com cara de letra "i" e marcada de alguma forma, fui até considerada louca.

Tem horas que acho que exagero nas conotações, mas o "louca" é verdade. Você conhece alguém que fez "eletroencefalograma" aos nove anos? Tá falando com ela. Já tinha dado muitos motivos para os meus pais tomarem essa atitude tão drástica.

Primeiro me recusei a ler, aprendi por um método novo que se chamava linguagem figurada. Se você cobrisse a figura com a mão, não lia nada. Minha mãe estava descontrolada, eu ria muito e só lia "sapo" se a figura estivesse lá.

Depois mandei meu irmão para o hospital. Não premeditei aquilo. E ele nunca esqueceu. Hoje nós rimos disso e brincamos "me chama de burra que te mando para o hospital". Acho que até incentivei ele na escolha da profissão - hoje ele é médico. Ele furava as bundas das minha bonecas com injeção e tinha paixão por machucados.

Meu pai comprou a revista "O Cruzeiro" e eu estava olhando as figuras. Meu irmão, sempre se considerando um ser superior disse "me dá a revista, que você é uma burra e nem ler você sabe". Me levantei indignada, segurei a revista com força e falei "vem pegar". Ele veio e puxou com muita força.

Quando ele já estava roxo de puxar soltei a revista, com aquela cara de diabinha em forma de gente. Ele caiu e bateu com a cabeça na quina da mesinha do centro. Foi sangue para todo lado. Cheguei na cozinha e falei toda contente " mãe, matei meu irmão porque ele me chamou de burra".

Minha mãe me deu um safanão e saiu no carro da vizinha para o hospital. Meu irmão levou cinco pontos na cabeça e nunca mais me chamou de "burra". Sei que sou feminina e usei lacinhos, mas houve horas em que precisei usar a força bruta.

Em pouco tempo aprendi a ler, pois desconfiar da minha capacidade mental era demais. Mas o que me incomodava era tolherem minha criatividade e cobrarem um racicíonio lógico, aquele que todo mundo tem. Meus bonecos tinham caras verdes, olhos vermelhos e cabelos azuis. As crianças ditas "normais" pintavam seus bonecos de cara laranja, boca
vermelha e cabelo preto. Sempre gostei de ser "diferente". Muitos professores chamaram minha mãe para falar que eu não me enquadrava no padrão.

Aprontei muita coisa na infância, era mentirosa, inventava histórias mirabolantes, cortei o cabelo das minhas bonecas de pigmaleão, arranquei a folha da enciclopédia Delta Larousse para ilustrar um trabalho escolar. Aprendi a dirigir a bicicleta do meu irmão sem ele saber. E fiz uma coisa trágica, arranquei todos os cílios. Era a última moda usar "cílios postiços".

Foi muito doloroso o processo de arrancar os cílios e fiquei com os olhos inchados. Na minha cabeça de criança, achava que para colocar os "cílios postiços" tinha que arrancar os cílios naturais antes. A culpa foi da minha prima Ana. Ela vinha de São Paulo para passar o fim de semana em Santos. A Ana era uma moça linda e eu era uma criança curiosa.

Ela tinha um biquini de onça que eu bababa para usar. E os benditos cílios, que ela punha trancada no banheiro. Então arranquei os meus durante uma semana, esperando por ela no sábado para colar os postiços nos meus olhos.

Meu pais, apesar de me amarem, chegaram a conclusão de que eu precisava fazer um exame de sanidade. Coloquei aqueles fios colados na cabeça e nunca esqueci. O resultado do "ele-tro-en-ce-fa-lo-gra-ma" foi muito decepcionante para mim: deu normal. O médico disse que eu era apenas muito vaidosa.

Até hoje quero matar esse médico, por não diagnosticar minha loucura. Odeio saber que sou "normal". Então criei outra pessoa, uma sósia de mim. Existe a pessoa normal, a que aceita tudo, é educada, é o que esperam dela. E a sósia, a que é o avesso de mim - a mulher que criei para questionar o pingo no "i". É a que se sente livre para mentir e para inventar histórias. Particularmente gosto dessa "outra", a dita amalucada.

A normalidade e a seriedade me cansam. Preciso achar um médico que coloque aqueles fios de novo. Quero uma nova avaliação, quero ler esse diagnóstico: falta de sanidade mental, pensamentos descontrolados, utopia excêntrica, vive no mundo da lua, não está apta ao convívio social.

Olha, o pingo do "i" caiu, não existe pobreza, todo mundo é criativo, ninguém é normal, posso amar quem eu quiser, comer chocolate, pois acabaram-se as doenças, a tristeza, a imoralidade e os assaltos.

Espero um dia em que todo mundo tenha um trabalho digno. Já consegui o meu. Tá lá na minha carteira de trabalho: Louco Profissional.

 
 
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