PERDER
Maurício Cintrão
 
 

Já perdi muita coisa na vida. Perdi amigos, parentes e pertences. Perdi o rumo algumas vezes e até perdi a vontade de chegar a algum lugar. Perdi dinheiro, documentos e vergonha. Perdi muitos beijos das mulheres que temi amar. Perdi fantasias e sonhos, perdi o desejo de sonhar. Esse foi recuperado com o tempo, quando perdi o medo de dormir.

Perdi vários campeonatos com times diferentes. Perdi Copas, peladas e Jogos da Primavera. Perdi partidas de buraco e exércitos no War. Perdi alguns livros, vários litros e muitos quilos. Perdi tantas oportunidades que seria inoportuno lembrar. Perdi sem perceber, perdi percebendo que perdia, perdi antes de perder.

Perco, ainda, muitas coisas. Perco isqueiros, canetas e chaves. Perco a memória à medida que as lembranças se perdem em mim. Perco a noção das horas, a gulodice das madrugadas e o desejo ardente. Perco o olfato apurado e o paladar exigente. Perco a capacidade de ser indulgente.

Tenho perdas históricas. Perdi o bonde quando menino, perdi ônibus, perdi táxi. Perdi a hora e acabei perdendo o trem, também. Perdi namoradas porque não sabia perder. Perdi outras porque já comecei perdendo. Perdi amores imperdíveis pois não tive coragem de perder a cabeça.

Perco e continuo perdendo as idéias daquelas crônicas incríveis. Perco empregos, propostas de emprego e situações confortáveis de trabalho. Perco a paciência com mais facilidade. Perco muita coisa com a idade. Perco até a perspectiva de ficar velho porque estou ficando velho e já não consigo enxergar de perto.

Perdemos todos quando as pesquisas mostram que há gente com saudades do regime militar. Perdemos a auto-estima, a raiva e a indignação. Perdemos o jeito, nós, os jeitosinhos. Perdemos a hora certa de fazer a hora. Fomos embora, perdemos sem saber.

Mas ainda temos jeito. Não perdemos a capacidade de perder. Porque perder independe da vontade, do jeito ou do querer. Perder tem força própria, safada e irredutível. Perder é o moto perpétuo que insistimos em buscar sem saber que já existe.

Perder é o grande trunfo do destino. É o inimigo dos inimigos, o provocador dos instintos. Perder é ganhar porque só perdendo é que se conquista a capacidade de lutar. Perder é perceber que já se teve um dia.

 
 
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