DE FLORES E JATOBÁS
May Parreira e Ferreira
 
 

Porque já vivi tantas perdas, por já ter me perdido tanto, e por estar em um momento de quietude diante do que me acontece, existem borboletas batendo asas no meu peito, resolvi hoje, deixar aqui uma antiga crônica. Ao contrário de qualquer perda, fiquei eufórica ao ganhar o primeiro lugar no concurso da ACESC-SP 2000.

 

É muito bom ser criança e andar com os pés descalços pela rua de terra batida.

Assim eu ficava com a turma do bairro no início dos anos 50. Sentados no meio-fio, sabão e canudinhos de mamona, brincadeiras inocentes de um tempo com cheiro-de-chuva-boa. Meu pai trazia da fazenda frutas exóticas e jogávamos amarelinhas com fichas de tamarindos, os dentes ficavam verdes e grudentos com jatobás, e macadâmias eram perfeitas bolas de gude.

A avó de uma das garotas da turma morava na casa ao lado da minha. Ela é dona Hortência e tem os cabelos azuis que eu acho lindíssimos, os meus também terão esta cor um dia.

Muitas vezes ela ficava na janela nos observando.

Tenho a impressão de que ela gostaria de brincar conosco, mas não pode porque a filha dela, que mora na outra casa, não quer que a mãe saia. Já escutamos as duas discutirem várias vezes. Como pode alguém falar assim com uma senhora tão bonitinha?

Um dia eu estava sozinha por ali, e ela me convidou para tomar um suco. Na hora fiquei em dúvida, mas Dona Hortência deu um sorriso tão gostoso e confiante que meu medo ficou com a bicicleta na calçada. Uma sala toda forrada de tapetes no chão e nas paredes. Espelhos, sofá de tecido bordado, muitos enfeites pelos móveis, perfume de flores. Fiquei sem fala até ouvir que o suco estava pronto.

Então olhei para ela. Os olhos azuis quase transparentes se abriam em riso silencioso enquanto fazia perguntas a meu respeito, numa voz macia parecida com a da Vó Pequeninha. Será que todas as avós são feitas de algodão-doce? Será que ela combina a cor dos cabelos com a dos olhos de propósito? Beijei aquelas bochechas molinhas com força, e pedi para voltar outras vezes.

Tomamos muitos sucos desde aquele dia. Ela me contando sobre suas viagens e de quando era mocinha, e eu repetindo para ela as histórias novas que aprendia. Achava essa minha amiga tão fascinante quanto as aventuras com a turma pelos arredores.

Não sei qual a causa de sua filha ser tão nervosa e preocupada com ela, mas eu também às vezes brigo com a minha mãe.

Em alguns dias seus olhos ficavam cinzas e uma grande ruga dolorida cobria a face de minha amiga. Mamãe me dizia para eu não ir visitá-la sempre, porque ela estava doente e precisava descansar.

Então hoje resolvi levar um pouco do meu xarope de groselha que papai diz ser o melhor remédio junto com um beijinho. Dona Azul não abriu a porta. Foi a filha que veio me receber. Me abraçou chorando e disse que a mãe, de hoje em diante, não vai precisar de mais nada, que ela foi para o céu das avós. É muito chato ser criança e ficar sem entender direito o que se passa.

Naquela tarde, meu pai chegou mais cedo do trabalho, sentou-se com minha mãe ao meu lado e juntos, conseguiram dar um jeito no jatobá seco que estava meu coração.
 
 
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