ILUSÕES PERDIDAS
Sérgio Galli
 
 
Perder o medo das ilusões perdidas. Sim, houve um tempo de se ter ilusões. No século 19, por exemplo, quando Honoré de Balzac escreveu o romance "Ilusões Perdidas". Balzac conta a ascensão e queda de um jornalista escroque, carreirista, sem princípios. Para o personagem, tudo é válido para se conquistar a fama, o poder, o dinheiro, a amada. Pouca coisa mudou em quase dois séculos. Século das Luzes. No século anterior, a revolução francesa pôs a pá de cal na aristocracia. A ciência e a tecnologia davam indícios do que seria o próximo século.

Adentramos ao século 20. A revolução estava à nossa porta. Veio a Primeira Guerra Mundial e o primeiro morticínio em escala industrial da História. Parecia que era o horror extremo. Na Rússia, a revolução bolchevique era o sinal de que um novo tempo surgia no horizonte. A Segunda Guerra Mundial no apresentou o que parecia inconcebível, um horror ainda maior. Inimaginável. Terminou de forma ainda mais sinistra: a bomba atômica lançada em Hiroxima e Nagasaqui. O homem tinha finalmente o poder de destruir o planeta e, conseqüentemente, a si mesmo.

Quer dizer, muito antes do Muro de Berlim desabar. Da União Soviética ruir tal qual um castelo de cartas, sem, praticamente, precisar de um banho de sangue. A ilusões perderam-se no espaçotempo. Houve um interregno na década de 60. Paz e amor. A derrota dos americanos no Vietnã. Barricadas em Paris. Era de Aquário. Tempo partido. Tempo perdido. Partidos, partidos. Partitas de Johann Sebastian Bach. Cacos de vidros, ossos, músculos, sonhos. Partilha de idéias. Ideais estilhaçados no front das inúteis e infames batalhas. Fragmentos de esperança aspergidos pela camada de ozônio. Futuro preterido pelo particípio passado.

Partidas as ilusões. Cidade perdida. Dessacralização das cidades. Dessacralização da morada. Mundo sem o Cosmo. Cosmovisão é o poder. Sagrado, apenas o dinheiro. Religião não mais regilare. No mundo internético, religião é um padre cantor. O sagrado é matéria. O espírito está em alguma gôndola de supermercado ou no écran da TV ou do computador.

Dia gris. Tarde gris. Tempo é dinheiro. Espaço é trânsito. Tempos pressa. Tempos competitividade. Nunca se tem tempo. Perda de tempo. Perder a insensatez. Perdida lucidez. Perdeu-se a capacidade de contemplar o pôr-do-sol. Não há mais pôr-do-sol. Perdeu-se o dom de ouvir a sonata ao luar. Não há mais luar. Perdeu-se a visão do brilho das estrelas no céu da madrugada. Não há mais chão de estrelas. Não há mais céu.

Ilusões mais do que perdidas. Perdemos a capacidade de ouvir a viola enluarada. Não mais sentimos o prazer belo de ouvir - eu disse ouvir, não ter algo que toca ao fundo, trilha sonora ao mesmo tempo em que fazemos algo - Egberto Gismonti. De ouvir Couperin. Esses têm de parar, ouvir. Fruir. Fluir. Flanar. Contemplar. Compaixão. Parênteses. Essas palavras praticamente foram abolidas do dicionário, tal qual ética, caráter, dignidade, honra, princípios, vértebra. Fecha parênteses.

Partidas a ilusões, a estrada do século 21 é permeada de pedágios, maus presságios, ágios, agiotas internacionais. A se prosseguir nesse rumo, sem lenço, documento, monumento, memória, bússola, ritos de passagem, mitos, ideais, sonhos, ilusões perdidas ou não, o que mais há para se perder?

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Sugestão de audição: Disco de Egberto Gismonti e Charlie Haden, gravação ao vivo de show realizado em 1989, em Montreal, Canadá. Gravadora ECM. Peças para cravo de François Couperin.

 
 
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