RUA VAZIA
Tarciso Oliveira
 
 
Não eram mais do que cinco e meia da manhã de um dia, para muitos, tão normal quanto outro qualquer do mês de setembro. Ainda podia-se, eventualmente, observar algumas formações de nuvens turvas a desafiar a iminente estação. A impaciência de Orlando naquele momento não era compartilhada por ninguém. Apenas ele sabia o real motivo real da sua agitação. Por três vezes já havia chegado à varanda e perscrutara a rua, até onde as construções vizinhas o permitiam, sem sucesso. Já eram quase seis, o que significava que aquele era um dia diferente dos outros. Ainda antes de descer para a garagem fizera mais uma investida malograda contra a grade da varanda. Desceu, ligou o carro e partiu para o trabalho com aquela sensação de missão frustrada.

Quem o tivesse questionado sobre a sua inquietação em tão tenras horas teria a grata surpresa de colher uma resposta inesperada: "O velhinho não passou!". Esta era a verdadeira causa excitação de Orlando. Ele já morava naquele prédio há pelo menos dois anos e, dias após dias, antes de sair para o trabalho, avistava o velhinho em sua caminhada. Na maioria das vezes o via ainda no início da rua, vindo. Quando o via no final da rua, indo, já sabia que havia acordado mais tarde, o velhinho era de uma pontualidade britânica. Não sabia de onde ele vinha nem para onde se dirigia. Na verdade, ele convencionou que ele estava indo para algum lugar, mas ele já poderia estar voltando de algum lugar que fora muito cedo. O que sabia apenas era que todos os dias o encontraria em algum ponto da rua ao chegar na varanda. Era um velhinho bem simpático, arcado, desdentado e murcho. Sempre seguido por um cão vira-lata, carregava na mão direita, alçado e sem nunca tocar o chão, um pequeno bastão de madeira tosca que lembrava um cajado dos pastores cinematográficos. Não era difícil vê-lo com uma surrada camisa amarela da seleção brasileira de futebol. Nunca usava sandálias ou outro calçado a não ser aquele velho tênis, encardido, mas sempre limpo. Sobre a cabeça, um boné, que variava, ele deveria possuir uns três ou quatro. Da varanda dava para perceber sua simpatia e a sua vontade de sorrir a quem quer que, no caminho, lhe desse qualquer motivo, por mais banal que fosse.

Todos os dias se passavam sem que, por algum motivo, Orlando viesse a pensar no velhinho do cajado. Mas aquele dia foi diferente. Ele simplesmente não conseguia tirá-lo da cabeça. Era uma idéia fixa que insistia em maltratá-lo. Lembrava-se a todo instante da imagem do velhinho caminhando ao lado do seu cão magrelo. Por alguns instantes chegava a esquecê-lo, mas sempre voltava a pensar no assunto. Não foi um bom dia de trabalho, tampouco produtivo. No final do expediente saiu com alguns amigos e tomou algumas cervejas. Dormiu tranqüilo quando chegou em casa, sequer conversou com a esposa, que já encontrara dormindo.

Perambulando pela rua, meio que perdido, o cão vira-lata do velhinho fez brotar um sorriso na face ressacada de Orlando nas primeiras horas claras daquela nova manhã. Mas foi um sorriso que não vingou. Não vingou porque o cão estava sozinho, em nenhum ponto da rua via-se o seu companheiro. Novamente Orlando ficou agitado. Outro dia sem ver o simpático velhinho seria demais para ele. Resolveu obter informações sobre o seu paradeiro. Pensou um pouco e estancou contrariado. Para quem perguntaria? Para o cão? Pensou mais e mais. Lembrou-se do porteiro do prédio. Perguntaria assim... como que por curiosidade. Era isso mesmo, pensou. Desceu as escadas, morava no primeiro andar, e encontrou o porteiro de prontidão a servi-lo sem questionamentos. O cão do velhinho, naquele momento, passava diante do seu prédio, o que serviu de pretexto para o seu súbito interesse.

- Não é o cão daquele velhinho que passa por aqui todos os dias? - indagou, enquanto esticava os braços para o alto fingindo espreguiçar-se.

- Era, senhor...

- Por que, era?

- Ele faleceu anteontem. Foi atropelado logo ali, naquela esquina, quando voltava da padaria. Eu acho que fazia meia hora que o senhor tinha saído.

Então o velhinho estava indo mesmo, como ele suspeitava. Nunca o vira voltar, mas sempre teve intimamente a idéia de que ele ia para algum lugar e voltaria depois. Não sabia o porquê desse sentimento, mas o tinha, e algo dizia que era o certo. Pensou em chorar ali, ao lado do porteiro. Pensou também em não ir ao trabalho em respeito à memória do simpático velhinho.

- Quer dizer que ele ia para uma padaria? - perguntou, segurando a vontade de derramar um rio de lágrimas.

- É que na padaria de lá do outro lado do quarteirão o pão é bem mais barato. Muita gente vai comprar lá.

- Você sabe quantos anos ele tinha?

- Acho que setenta e seis, ou sete, não lembro direito. Saiu no jornal de ontem. Disseram que foi por causa daquele cachorro. Ele salvou o bicho, mas acabou se ferrando...

Para Orlando não valia mais a pena escutar mais nada sobre o assunto. Subiu as escadas e foi até a varanda. De lá, olhou para os dois lados da rua e pensou no velhinho que nunca conhecera pessoalmente, mas que estava tão presente no seu dia, mesmo que por alguns minutos no início da manhã. Ficou pensando em quantos centavos por dia o velhinho economizava para andar tanto até a tal padaria de preços mais acessíveis. Se tivesse o dom de prever o futuro, certamente lhe teria dado tantos centavos quantos fossem possíveis para vê-lo vivo. Definitivamente não iria ao trabalho. Precisava encontrar uma solução para dissipar todo aquele sentimento de revolta que queria aflorar. Torturou-se pensando que deveria, num daqueles dias qualquer que antecedera a morte do velhinho, ter descido do seu trono e ter dito ao simpático velhinho: "- Bom dia, como vai o senhor? Tenha um bom dia!". Mas só agora pensara nisso... E ficou ali um bom tempo.

O cão sumira de vista. Como não entendesse o que acontecera, talvez estivesse seguindo os últimos rastros do seu dono em busca de encontrá-lo em algum lugar. Ou talvez estivesse indo para a padaria, instintivamente, num gesto autômato que ficara programado devido às tantas vezes que percorrera aquele caminho. Depois daquele dia, nunca mais viria ver aquele cão. Talvez a falta de alguém para alimentá-lo o fizera definhar e morre também, ou, quem sabe encontrara um novo dono longe dali. Estava ficando irritado consigo por não mais conseguir visualizar a face do velhinho, por mais que se esforçasse. Ninguém notou nada de diferente desde o dia em que o velhinho faleceu, mas a partir daquele dia as manhãs de Orlando seriam diferentes. Ele não teria mais o que ver, nem no início, nem no fim e nem em nenhum ponto da rua. Teria que superar, de alguma forma, aquela perda. Não suportaria mais chegar à varanda pela manhã, antes de sair para o trabalho, e ver aquela rua vazia.

 
 
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