MANILHA
Marco Aurélio Brasil Lima
 
 
Ele abriu a porta e deu com ela ali, batucando o chão com a ponta do pé, os braços cruzados, aquela maledetta ruga na testa e os olhos fixos na TV, como quem presta muita atenção.

- Aonde estava?

Ele fechou a porta atrás de si, com a cabeça meio embaralhada, precisava pensar bastante antes de responder. Em pensamento analisou detidamente a sua mão. Virou um sete. Manilha é dama. Se tivesse um parceiro ele perguntaria: vai ao baile acompanhado, parceiro? Tendo ou não tendo dama na mão, o parceiro responderia: ô! Minha horta tá regada. Mas ele não tinha parceiro agora, era só ele a oponente ali na frente, parecendo que estava vendo a coisa mais interessante do mundo na TV.

- Oi, amorzinho! essa saída era clássica. Ganhava tempo pra não só ver o que tinha na mão, mas também pra tentar imaginar os trunfos que ela teria ali, escondidos, embaixo daqueles braços cruzados com ar de rebeldia. Ela só soltou um "hamf", e deu aquela olhadinha mortal pra ele.

- Ué, você sabe que eu tava no Geraldinho, eu deixei recado no celular... - ele começou bem a rodada, botou um Dois, que sempre causa um certo impacto. Era preciso ganhar a primeira rodada, em caso de empate na segunda ele levava o ponto pra casa.

- Que recado, Edinaldo, você sabe muito bem que o celular tá desligado!

Hora de dar aquele teatral tapa na testa, com um "puuuuuuuuutz" que vale por mil palavras. Ela amarrou o jogo, o que significa que quem fizer agora leva. Ele torna. Mas o quê? Que carta?

- Você foi na tua mãe, não foi? ele perguntou e isso equivalia a um "truco!" bem trucado, com força e convicção, do tipo que intimida mesmo. E intimidou, ôch, ela descruzou os braços e deu uma amanteigada na voz:

- Fui... Mas qual o problema? Isso te dá desculpa pra chegar à uma e meia da manhã em plena quarta-feira, ô celerado?

Putz. Pegou pesado. Isso era assim como uma dama de copas bem dada, daquelas jogadas com desprezo. E mais, era um grito de "Seis, ladrão!".

O jogador tem que fazer um certo tipo. Ele anda, joga o paletó em cima da mesa, pára à frente dela com as mãos nos bolsos e só então diz:

- É que eu acho que a senhora deveria ter pensado um pouco antes de correr pra baixo da saia da mãe, e lembrado que estava com a chave do seu maridinho, porque assim ele não teria esperado na porta durante duas (ele ia falar três, mas conteve-se a tempo porque exageros nessas horas não são bem vindos) horas na porta de casa antes de decidir esperar na casa do amigo, que coincidentemente estava organizando um truquinho. E note que seu maridinho não deixou de avisar, apenas, no, digamos, calor do contratempo, esqueceu-se que a senhora não estava com seu celular...

Silêncio na sala. Ela não era uma jogadora. Tinha sido um zap na testa. Seis pontos no bolso.

Se ela fosse jogadora iria perceber o blefe. O argentino que jogava com eles diria: tá blasfemando! Ele sempre confundia as bolas...

Ele foi pro banheiro sem mais palavra. Agora era esperar a próxima rodada.

 
 
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