O ZAP ENQUANTO FENÔMENO SÓCIO-CULTURAL: UMA ABORDAGEM PSÍQUICO-TELEVISIVA
Roseli Pereira
 
 
E aí? Gostou do título?

É que quando eu me meto a falar nesse assunto, uma croniquinha básica nunca basta. Por isso decidi escrever logo uma tese, orientada pela minha larga vivência no mundo do zap. Depois, quem sabe, posso submetê-la a uma banca de respeito e descolar um doutoramentozinho, assim, de leve. O que, tomando-se por base a quantidade de pessoas que conhecem bem o tema, não seria mérito nenhum.

O primeiro indício de que você está sendo atingido pelo zap é a ocorrência de um fenômeno comum em muitos lares, mas para o qual ­ pelo menos no início - ninguém dá muita bola. Você se joga naquela poltrona gostosa que tem na frente da TV e fica lá, olhando a telinha distraidamente. Aí o Antônio Fagundes (ou qualquer outro monumento menos cotado) começa a falar alguma coisa. Mas você nota que o som não combina. E aí você pisca pra entender por que o Antônio Fagundes estaria falando com voz diferente e em dialeto de motoboy. Mas percebe que o que você está vendo, de fato, é uma entrevista com um motoboy. E aí você pisca de novo para entender por que estariam entrevistando um motoboy em plena novela das oito. E, naquele milésimo de segundo que dura uma piscada, a entrevista se transforma em balé. Ou em perseguição policial. Ou na lista de ingredientes de uma receita gastronômica. Ou na segunda edição do telejornal, sei lá.

Quando isso acontecer (ou acontecer de novo) com você, basta olhar à sua volta. Você vai identificar no ato uma pessoa das suas relações que está acometida pela síndrome do zap. Sim, é aquela ali, que está com o controle remoto na mão. Aquela, que você chama de marido, de esposa, filho, filha, tio, tia, pai, mãe, irmão, irmã ou seja lá do que for, mas que o resto do mundo sempre irá identificar como "zapper", obedecendo às convenções científico-sociais.

A síndrome do zap, assim como a gordura localizada, pode atingir a todo e qualquer ser humano, só divergindo quanto à condição indispensável para o seu desenvolvimento. No caso do zap, inclusive - embora as pessoas costumem ingerir quantidades absurdas de qualquer coisa do gênero alimentício diante de uma tela -, a soma das calorias é irrelevante. Na verdade, basta haver acesso direto a um aparelho de televisão.

Cientistas renomados afirmam que o zap surgiu com a invenção do controle remoto. Mas isso, segundo a minha experiência pessoal, é um redondíssimo engano. Muito antes do controle remoto bater à nossa porta, meu pai já era um zapper. Dos profissionais. E o seu principal instrumento para o pleno exercício dos sintomas era eu.

"Troca o canal?" e eu, que já ficava sentadinha bem perto do aparelho pra facilitar a operação, ia girando o seletor até ele dizer "deixa aí, deixa aí". Mas o sossego durava bem pouco, porque ele logo repetia o mesmo pedido, em tom suplicante: "troca o canal?".

É bem verdade que a invenção do controle remoto ­ e mais especificamente sua chegada à classe média - me libertou. Mas só me libertou de ficar ali, do ladinho do aparelho. Porque até hoje ver televisão com o meu pai é uma espécie de missão impossível. Ou de quebra-cabeça. E, desta vez, o tom suplicante sempre parte de mim: "Não troca o canal! Não… deixa aí, deixa aí".

Só que, em geral, minha súplica é amplamente ignorada. Até porque, segundo recentes pesquisas, a posse do controle remoto - em 97,3% dos casos - é determinada pela hierarquia familiar. Tais dados, no entanto, só vieram comprovar o que todas as mulheres estão cansadas de saber: que além de pensar que estão sempre no comando (o que aliás é ótimo, desde que a mulher saiba… digamos… conduzir a situação direitinho), os homens estão muito mais propensos a contrair a síndrome do zap. Sabe-se lá por quê.

E aí uma mulher conhece um homem maravilhoso numa festa. E aí ele se aproxima e começam a conversar. E aí eles saem pra jantar. E aí começam a namorar. E aí ela enfia na cabeça que ele é o homem da sua vida. Ah, é? Tem certeza mesmo? Pois antes de pensar uma coisa dessas, toda mulher deveria fazer o teste da televisão. E não apenas uma ou duas vezes, porque o zapper clássico conhece suas limitações e sabe disfarçar muito bem.

Aliás, desconfio que homem nenhum expõe sua terrível compulsão pelo zap antes de ter certeza de que a mulher está apaixonada e envolvida. Mas como eles têm o hábito de sempre ter certeza das coisas, uma mulher esperta terá muito tempo pra descobrir se ele é zapper ou não é, e, caso seja, se valerá mesmo à pena lhe conceder o poder absoluto sobre o que ela não irá ou não irá assistir dali em diante.

Não se engane: eu disse não irá ou não irá, mesmo, porque é impossível assistir a qualquer coisa com um zapper por perto.

E se ela decidir que sim, que vale à pena conceder-lhe todo esse poder (e às vezes vale, acredite), é preciso ter em mente alguma distração, para evitar aborrecimentos futuros. Por exemplo: quando a voz do Antônio Fagundes (ou de outro monumento menos cotado) ficar meio diferente (e nem precisa do tal dialeto), uma das saídas é mudar de cômodo e de aparelho de televisão. Outra, bem mais legal, diga-se de passagem, é entrar na internet e zapear (com suas próprias mãos) pelos sites. Até encontrar este aqui. E ler este texto inteirinho. Que tal, heim?

 
 
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