REVOLUÇÃO E VITÓRIA
Fernando Borba
 
 
Sempre que venho a esta cidade, visito a Capela de Nossa Senhora da Conceição da Jaqueira. Ou das Barreiras - nome preferido por Florêncio, o sacristão.

Há que se atravessar lentamente o pequeno adro. Convém deter-se em uma das janelas e apreciar a nave tão simples e graciosa: dali se vê o púlpito de um lado e seu simulacro do outro, domina-se com o olhar todo o espaço interior, avalia-se bem a profundidade do altar e a proporção do arco. Já no meio da nave, sente-se uma claridade tênue cair de invisíveis lucernas; o silêncio pesa; conta-se que alguém ouviu, tempos atrás, o riso do Menino brincando com sua Mãe.

"Naquele tempo a estrada corria pela beira do rio" - dizia Florêncio. - "A Capela foi construída sobre as barreiras que protegiam o sítio. Ainda não havia jaqueiras plantadas aqui". Naquele dia, escutava a explicação, atenta, uma senhora vestida de negro, os cabelos louros fazendo cachos em volta do pescoço. Segurava pela mão uma menina de dez anos, também vestida de negro, que queria partir logo para o fundo da Capela.

Eu estava sentado num dos primeiros bancos. Florêncio veio arrastando os passos, deslizando a mão na parede, e já muito perto me reconheceu. Como acontecia ultimamente, não tínhamos nada a dizer senão os cumprimentos convencionais. Foi até a azulejaria que se estende sob o púlpito e começou a limpar com um pano úmido a história de José no Egito.

A menina conseguiu soltar-se e correu pela nave, pisando forte. Florêncio apertou os olhos e tentou focalizar a causa daquele barulho insólito, afastando no ar, com movimentos da mão, a névoa que lhe escurecia a vista. A menina parou de repente; Florêncio, pensando tocá-la, afagou a cabeça de uma figura do painel de azulejos e mandou que ficasse quieta. Indicando as talhas douradas, começou a descrever, como em tantos dias de sua vida, o relevo pujante, a harmonia do desenho, a beleza que ele enriquecia na imaginação, já que não podia mais vê-la. Balbuciava palavras doces e tinha gestos suaves para falar de sua Capela. A emoção lhe embargou a voz e ele chorou, como de hábito.

Depois de se dominar, andou junto aos painéis, e com o entusiasmo de outrora fez o sinal autoritário dos guias para que o seguíssemos. Não era preciso que eu me levantasse. A senhora, que conseguira capturar a menina, também não se moveu. Florêncio, cercado de inexistentes turistas, explicava as pinturas do forro, o trabalho da pia-batismal.

Sentado e imóvel, eu era uma parte do espaço. Desaparecia no entorno secular, povoado de signos. Toda aquela beleza seria simples trabalho de artífices, ou oferenda de Deus à sua Mãe grávida?

Junto à porta de entrada, Florêncio continuou a falar para um público ausente. Então, percebi que suas palavras não eram mais as de um guia. "Hoje há de se fazer justiça" - falou muito alto, olhando para o adro vazio."Afastem-se todos e convoquem os personagens." Começou a fechar a porta e as duas janelas. Correu devagar as folhas pesadas, tateando os ferrolhos, os cravos. Passou a chave. O barulho das ferragens ecoou no espaço silencioso. Quando voltou, pensei que vinha trazendo por engano uma das trancas de ferro, mas vi com surpresa que era uma espingarda. A senhora descobriu a arma e pôs na boca as costas da mão. Seus olhos eram claros, a pele fina. Não era uma senhora, ao contrário, era ainda muito jovem. A menina a abraçou e disse, intimidada: "Cuidado, Isabel." Eram irmãs, sem dúvida. Tinham os mesmos cabelos louros, fazendo cachos nos pescoços esguios, idênticos olhos azuis, o medo igual.

Eu precisava me aproximar de Florêncio para mostrar que mesmo apontando um rifle automático, ele não trazia qualquer perigo. Mas, ao pressentir que ia em sua direção, manejou vigorosamente os fechos da arma e a dirigiu para mim. "Que ninguém interfira" - disse, com expressão ofendida, apoiando-se na parede. - "Quero que venham aqui Bento José da Costa e os inquisidores da Devassa de 1817, e mais, todos os patriotas revolucionários, para que se prove ao Clero, Nobreza e Povo a trama caluniosa montada contra a memória do herói Domingos José Martins".

A moça sentou ao meu lado. "O que ele está dizendo? Que significa isso?"

"Domingos José Martins era o maior dos chefes da Revolução" - respondi, embora soubesse que nenhuma explicação podia esclarecer o mistério da mente de Florêncio. - "Ele era noivo da filha do dono desta Capela. Aproveitaram o momento festivo da vitória e se casaram aqui. Três meses depois, derrotado, Domingos foi preso, condenado à morte e executado. Bento José da Costa, seu sogro, foi intimado a justificar-se nos inquéritos da Devassa portuguesa."

"Mas o que temos com isso?" - perguntou Isabel, em voz baixa. - "Vim aqui encomendar uma missa por alma de minha mãe. Quero sair. Preciso ir para casa."

"Florêncio pensa que estamos em 1817. Bento José da Costa era um comerciante português rico. Com medo de ser condenado como simpatizante da Revolução, declarou que Domingos tinha raptado Theodora e casado à força. E que Domingos era um aproveitador, que pretendia apoderar-se da fortuna dele através do casamento com sua filha. Agora, Florêncio quer fazer justiça, e precisa ouvir você."

"Por que eu?"

"Ele acha que você é a própria noiva e viúva, Maria Theodora Martins."

"Meu Deus."

Florêncio tirou um relógio do bolso e sentenciou: "Dou um quarto de hora para que se reúnam os participantes da tramóia, ou mato vocês todos, até mesmo a pequena dama-de-honor de Theodora."

Depois escorregou devagar pela parede, até sentar no chão. Soltou a arma, descuidado, e olhou para um ponto além da nave. Sua expressão se adoçou com um sorriso: "Eles se amavam muito. Costumavam vir à Capela ao cair da tarde. Domingos e Theodora gostavam de passear pelo sítio, colher as flores das calêndulas, deitar na relva cheirosa. Conversavam sobre o futuro da Pátria livre, quando a Revolução vencesse. Eles planejavam a construção de um Brasil forte e soberano, fundamentado na paz, na justiça e no amor fraterno".

Soltou um suspiro e fechou os olhos. Parecia muito cansado. Sentei junto dele, no chão de tijolos, e dei umas pancadinhas em sua mão. Depois de cabecear um pouco, Florêncio abriu um sorriso que fez dançar as inúmeras carquilhas de seu rosto, e continuou, numa voz arrulhada: "O casamento foi a coisa mais bonita que já aconteceu na Capela. Foi celebrado por quatro padres, todos da Revolução. A nave, o altar, os bancos, estavam cobertos de flores. Quando a noiva entrou, eu, que tinha botado muito incenso no turíbulo, de contente, joguei tanta fumaça que Theodora, linda e feliz, começou a rir e a tossir... Bento parecia ser o mais alegre, o canalha traidor. Do lado de fora o povaréu enchia o sítio, desde o rio até a casa-grande, dando vivas a Domingos e à Liberdade..." Mas logo ficou sério, tomou a espingarda e gritou: "Que estão fazendo aqui? Já foram chamar os indiciados?"

"Como vamos chamar, se não podemos sair?" - perguntei.

"Mande-se um tambor. Um mensageiro."

"A noiva e a pequena dama, então? Eu fico aqui, como garantia."

"Que seja" - concedeu. Apoiado na arma, levantou com dificuldade, andou até a porta e abriu-a devagar, espreitando o campo lá fora. De repente recuou, assustado: "Agora é tarde demais. As tropas do Rei já cercaram a Capela. Vieram me prender."

Mostrava as mangueiras, os pés de acácia, as jaqueiras. Pombos voavam em pequenos bandos e não havia ninguém no sítio àquela hora. Florêncio encostou o cano da espingarda na própria têmpora e falou com voz firme: "Jamais me entregarei. Se querem outro mártir, aqui está."

Tomei a arma de suas mãos trêmulas."Nada disso, Florêncio. Aquelas tropas não são portuguesas, são dos Patriotas. Vencemos, Florêncio. A Revolução triunfou. Domingos está vivo." Ele estendia o olhar embaciado pelo capinzal, pelo arvoredo, e acreditava, pois via com os olhos límpidos da alma. Andou pelo adro, sorrindo, os braços abertos. Eu o acompanhei, Isabel e a menina nos seguiram. Fomos amparando seus passos pelo sítio deserto, a caminho de sua casa. Aqui e ali ele parava e fazia reverências aos heróis imaginários, chorava e ria ao mesmo tempo, murmurando coisas inaudíveis. Bateu palmas como uma criança quando Isabel falou: "Ei, Florêncio, vá tratando de arrumar a Capela e dar um polimento no turíbulo. Logo, logo, eu e Domingos vamos marcar a data do casamento."

O sol começava a cair. Pensei como era fantástico o poder da imaginação, vendo Florêncio seguir pelo descampado, vivendo sozinho aquele enredo de sedição, de luta e de vitória.

 
 
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