A VIZINHA EM MIM
Jorge Silva
 
 
A vizinha do lado vive próxima de mim. Quase dentro, aliás. Ela conhece a minha vida melhor do que eu mesmo, é mais objectiva na respectiva observação. Tudo ouve e tudo vê, aglutina informação, deglute-a com vontade e dá-lhe imenso prazer, viver assim. Depois, vem a parte melhor.

A vizinha do lado não trabalha, como eu. Vive em casa todos os dias, limpa e arruma, cozinha e apruma. Tudo muito rápido, no intervalo das novelas, sobra tempo para cortar. Na casaca alheia que hoje poderá ser a minha, pois então. Trabalha diferente, a senhora, doméstica e argumentista, encenadora de vivências picantes e intensas, de faca e alguidar, vidas escandalosas como pano de fundo de um dramalhão qualquer.

E ela pensa e ajuíza, identifica o elenco, com rigor, adorna o enredo com personagens mistério e pormenores que só ela se lembraria de reparar, fantasia, para enriquecer a película. É que a vida cinzentona da maioria de nós não cativa audiências na entrada do edifício. Não interessa a ninguém.

Porém, a vizinha do lado não pensa assim. Nem a de cima, confidenciou-me um dia numa coincidência de elevador. Dissera-lhe a outra, fingi pasmar, que o farmacêutico do quinto passeia o cão num horário diferente por causa da loura do prédio da frente, com quem se embrenha em conversas, vá-se lá saber acerca de quê. A loura é divorciada, gaja do engate, percebe-se logo. Mas ele, o malandro, casado e com filhos, a de cima bem o fisgou, a dar à língua com a outra, flausina, com a esposa desconfiada e putedo a toda a hora, ouve-se por toda a escada. Aquilo vai ser um problema. Obrigado pela boleia e até amanhã se Deus quiser.

Eu fecho a porta de casa, aliviado. Mas imagino o falatório, nas costas dos outros vejo a minhas, e evito, confesso, viver fora dos padrões dessa vizinha, dar nas vistas, protagonizar. Bom dia e boa tarde, mulher bonita nem olhar. Música baixinha, sussurro, como os diálogos com as visitas que já não tenho por se terem cansado de murmurar. Paranóia, diziam elas.

Mas eu vi aterrar no terraço do meu apartamento a televisão e o faqueiro, o fogão e a mesinha que julgo ser do hall de entrada. Do farmacêutico, julgo eu, pois também choveram supositórios, amostras gratuitas, e uns calmantes, à borla idem, que me deram um jeitão. Para controlar a neura, adormecer. Exausto por viver a vida que a vizinha do lado deixa, espreitando os meus passos e rotinas pelo indiscreto buraquinho na porta, periscópio que lhe mostra a vida à tona do lodaçal em que ela mergulhou. E eu para lá caminho, vizinho, como o do segundo direito, até já ouvi contar que a tipa do café, boazona, lhe destruiu as poupanças em luxos e o desgraçou. Um escândalo, viver dessa maneira.

Não acha?

 
 
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