DE DEIXAR VIVER. EM TRÊS TEMPOS
Marco Aurélio Brasil Lima
 
 
1.

Lá em Tampa, Florida. Caramba, ele é um homem, não é? E apesar de tudo o que sabe, que a sociedade ocidental é decadente e permissiva, que o demônio é quem fez a mulher e que a missão dele é sagrada, e apesar de saber que seu lugar é no jardim de Alá, cercado de mulheres (contradição?) e que seu destino é a morte em combate, bom, apesar de tudo isso ele continua sendo homem.

E está olhando uma mulher. Não, não. Nada de demônio. Anjo, sim, isso sim. Ela sorri tão espontânea, tão luminosa! E enquanto conversa com as outras pessoas, na porta da igreja, depois do culto de domingo, gesticula tão graciosamente!...

Aquela pele branca não tem nada de demônio, Ahmed. Aquele sorriso cheio de luz tem uma linguagem celeste, Ahmed, coisa que Alá fez. Alá fez assim, desse jeito aí, que eu estou vendo agora, parado do outro lado da rua, enfeitiçado. Entende, no meio da podridão conta o que lutamos, existe uma flor, imaculada e colorida com uma tinta sobrenatural.

Começa a assitir os cultos, lá no fundão. Levanta quando todo mundo levanta, ajoelha quando todo mundo ajoelha. Só não canta pra não passar vergonha com o sotaque forte. Ahmed não desconfia, acha que ele está no curso de pilotagem. Mas ele ali, ouvindo sobre dar a outra face quando lhe batem, sobre amar o inimigo e coisas absurdas como essas.

Ele diz a si mesmo que está estudando o terreno, entendendo o inimigo. Mas a verdade é que aquele sorriso, aqueles gestos suaves, e aquele olhar que ele recebeu no último domingo, enquanto o pai dela tentava puxar assunto com ele, bom, a verdade é que tudo aquilo era assim como um selo de autenticidade naquele papo de dar a outra face e amar o inimigo.

Por isso, talvez, é que quando Ahmed e os outros todos rumam pro aeroporto, depois das preces, ele chega atrasado, perde o vôo, fica olhando lá debaixo o 757 alcançar as alturas e não sabendo nem se deseja ou não boa sorte a Ahmed.

2.

Aqui no Capão Redondo, São Paulo. Mineiro mandou dizer que no baixo do Jerivá quem manda é ele. O lôco tá achando que pode, depois que empacotou o Cabeça e que matou três gambé.

Esse tipo de insolência tem que ser respondida rápido. Naquela noite os onze se armam até os dentes, entram nos carros e invadem o Jerivá com os faróis apagados. Quem tava na rua desaparece rapidinho.

- O Peçonha tá subindo! O Peçonha tá subindo! algum pivete grita e é a senha pros onze se mexerem, metranca na mão, alvo detectado, pipoco pra todo lado. Estouraram o barraco do Mineiro, mas o desgraçado tava esperando, foi o rascunho do inferno.

Alguém sai correndo pela viela de trás. Peçonha faz sinal pro Magro ir atrás. Ele vai é atirando, sem olhar em volta. O cara é rápido mas o Magro atira melhor que qualquer um. O cara se arrasta, consegue pular uma janela. Alguém grita e começa a chorar. O Magro estoura o antro. Liga a luz.

O baleado tá nos braços duma morena. Ela chora e abraça, chora e abraça. O Magro reconhece. Elisete, colega dele na escola. Tiveram rolo. O baleado e ela olham com medo, e no olhar dela também o reconhecimento. Sabe quem ele é. Mas não diz nada, pára de chorar, e olha. Ela tá grávida.

O Magro dá meia volta e pica pros carros. Peçonha olha pra ele quando ele chega.

- Derrubei o maluco - o Magro diz.

No dia seguinte de manhãzinha toma o ônibus pra Goiás, vai viver outra vida.

3.

Lá no Rio. A mãe olha o filho rindo enquanto fala ao telefone. Ele tá feliz, e a felicidade é palpável, é concreta, quase.

Ela suspira e pensa nas suas reservas todas quanto à moça. Pensa em tudo o que fez pra dissuadir o filho. Fica imaginando pela centésima vez tudo o que poderia acontecer se aquilo virasse casamento, o inferno que poderia ser, o sofrimento...

Aí ouve ele falando com uma voz que ela reconhece, é de felicidade pura:

- Eu também te amo. Muuuuuuuuuito.

Aí ela suspira, e depois dá um sorrisinho e diz pro filho:

- Diz que eu mandei um abraço pra ela, filho!

 
 
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