UMA E MUITAS
(UM DIA FRIO, UM BOM LUGAR PRA LER UM LIVRO)
Marina Salles

Vida é uma e muita coisa. Um homem andando na rua está vivo. Um animal correndo de um predador está vivo. Um gato dormindo no telhado está vivo.

Às vezes eu mesma me pergunto o que é vida. Porque pode ser interpretada de uma e muitas formas. Porque às vezes um homem andando na rua não está vivo. Às vezes isso depende de quão frio está o dia. Mas um dia frio pode ser um e muitos diferentes. Às vezes a gente nunca encontra um bom lugar para ler um livro num dia frio.

No inverno do ano retrasado eu tinha minhas dúvidas sobre o que era estar viva. Porque eu só pensava na vida. O inverno foi muito frio no ano retrasado, e eu passava o dia inteiro com frio e não sabia o que era vida. E de noite eu não conseguia dormir porque eu pensava demais e precisava ler um livro. Não havia nenhum bom lugar para ler um livro naquela noite fria.

E eu ficava pensando sobre coisas muito tristes, e tudo o que eu mais queria era uma boa música, como aquela caixinha de música em CD da minha irmã, e que eu queria dormir ouvindo caixinha de música. E eu escrevi umas coisas muito tristes o ano retrasado, porque meus irmãos tinham que ir dormir cedo e acordar cedo no outro dia, mas eu queria ficar jogando CiberGladiators e esquecendo o frio que congela a vida e me faz querer chorar, e congela minhas lágrimas. Foi o ano mais frio da minha vida, e o mais triste, e eu li um livro lindo sem achar um bom lugar para ler um livro na minha madrugada fria.

Viu? Às vezes vida também é o espaço de tempo em que o corpo funciona. Se o corpo funciona, é vida. E se não funciona? É morte? Morte é deixar a vida, certo? Mas e quando já se está morto? É... Não-vida? Morte contínua? Eu fico imaginando, uma pessoa eternamente morrendo. Como Tântalo, em seu lago de eterna sede. Ou Prometeu, com a águia sempre comendo seu fígado. Que tédio devia ser, passar os dias inteiros sem se mover e observando sua própria dor ou sede! Como esses caras não morreram de tédio? Hie, talvez já estivessem mortos. Ficar parado olhando p'ro teto não é vida. A menos que haja nele um desenho, ou talvez um texto - quem sabe um livro? Mesmo que não seja um dia frio, nem um bom lugar para ler um livro.

Às vezes não é nem um bom livro. Um livro ruim é melhor que um teto branco. Ou preto. Como um céu eternamente escuro, e sem estrelas. Nem mesmo uma luinha mirradinha, amassada, nem mesmo uma nuvem. E não é nem uma nuvem de tempestade. É só uma nuvem, uma nuvem que não há em um teto negro e sem graça em um dia extremamente quente e abafado quando se está deitado em um chão extremamente desconfortável sem nenhum livro - nem mesmo um péssimo livro - para passar o tempo. Meu pensamento não estará em você. E não estará vivo.

Minha mãe diz que "a vida passa por vocês!", se referindo a mim e meus irmãos. Que vida? Vida é um momento, um instante. E ao mesmo tempo é um tempo, um mundo, uma primavera, uma flor que se abre no final do inverno, linda, em todo o seu esplendor, como a dizer "bom dia!", que como se não víssemos o sol há anos respondemos, cheios de alegria. Vida é o morangueirinho que nunca dá frutos amanhecer um dia coberto de moranguinhos vermelhos, grandes e suculentos, no meio de um inverno alegre, ou no fim. Vida é de repente uma cachorrinha dourada saltar pelo jardim como a própria encarnação da Vida, e pular sobre seus donos, deixando-os falsamente furiosos, abanando o rabo. A vida passa por mim, sim. Talvez, num dia frio, eu não devesse querer ler um livro. E sim brincar como uma criancinha, resgatando a alegria da infância proibida.

Eu queria a vida do homem que subiu ao topo do Everest; do índio que batalha pela sua aldeia na floresta; do esquilo que corre pelos galhos das árvores; das garotas de anime que vivem a batalhar contra monstros de todos os tipos para salvar "alguém". Por que o homem subiu o Everest? Para viver. Por que o índio luta por sua aldeia? Por honra. Por que o esquilo corre pelos galhos das árvores? Porque pode. Por que os heróis de anime lutam contra os vilões? Porque gostam, porque podem, porque precisam, para viver. Eles não precisam do livro. Eles não criaram as oportunidades. Elas já estavam lá quando eles nasceram. Mas eu preciso criar minhas oportunidades. Para não precisar do livro.

Eu preciso viver - não deixar viver, mas Fazer viver. Criar a vida. Sentí-la. Viver o amor. Viver... Vontade Infinita De Amar. V.I.D.A. "Eu quero é viver!".

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