PEDRADA TERMINAL
Jorge Silva
 
 
Só a vi quando alcancei o topo da duna mais alta num raio de quilómetros. Ao longe, imagem difusa pelo efeito do calor, a sua presença imponente dominava o cenário. Para lá me encaminhei, certo de que obteria finalmente a resposta para muitas perguntas e assim mitigaria a sede de conhecimento naquele deserto de idéias.

O sol cumpriu o seu papel a rigor. Cáustico e abrasador, gretava-me a pele depois de tostada, requinte no pormenor. Era essa a missão que a aridez daquela terra condenada lhe impunha, torturar sem piedade os idiotas e os desnorteados que decidiam morrer ali. Não escolhiam, seguiam em frente para a armadilha fatal por serem estúpidos que nem calhaus com olhos. Ou por se perderem pelo caminho, algures. Zigue em vez de zague, tudo perdido...

O tanas! Este indivíduo inteligente mas com pouco sentido de orientação, este vosso criado, tem trunfos de ouro nas cavidades mais recônditas de um cérebro insolado, isolado da razão. É só fixar o olhar na mancha distante, enevoada de pó e seguir adiante, sempre a pensar.

A rocha é sólida e firme, mas o vento fustigante, erosão, transforma-a em pó. Em areia, parvalhão, como aquela que te enche as sandálias e se agarra aos lábios secos como pão ralado ao croquete. A fome que isto dá. E já raspei o fundo à marmita, não tenho mais nada para comer. Vamos embora, seguir o ponto no horizonte, procurar a salvação da consciência seca e cheia de coisas pesadas para acartar nesta longa caminhada, nesta persistente perseguição das utopias.

Fui tirando a roupa à medida em que o calor apertava, suava. E tentava perceber se era Roseta quem acenava promessas frescas e retemperadoras, enigmas decifrados nos hieróglifos de pessoas antigas e cheias de vontade de comunicar uma sabedoria que adivinhavam perdida num futuro pouco distante, nos destroços da desditosa biblioteca seu orgulho que uns brutos quaisquer tratariam de obliterar. Roseta não seria, de tudo quanto ensinou restaram apenas as pistas para caçadores de relíquias e outros predadores individuais do património cultural que Roseta queria para todos. Morreu de desgosto, coitada.

Considerei a hipótese, claro está, de ser Maria, a Filosofal. Contudo, facilmente se conclui que a ignorância ganhadora e o culto do verniz, cirurgia plástica radical (no cerebelo), liquidam as chances de uma vitória parcial das coisas um nadinha mais profundas. Os sonhos transformaram-se nos esqueletos ressequidos, espalhados pelo areal desta imensidão sem nexo.

E com isto fui chegando mais perto daquela sombra amiga, de pedra, tão próximo lhe sentia a frescura. Brisa marítima, mas ensonsa que o mar não mora perto dali. Só mais uns passinhos, consigo tocar-lhe, orifício bizarro, parecia uma fechadura, quente e húmida, que estranho. Entrei, pensava, no oásis que me esperava.

Mas afinal saí. A pedra, de madeira, era falsa. E eu, qual sonâmbulo, acordei no patamar de escada, todo nú, dedo enfiado na boca entreaberta da vizinha que regressava da padaria. Ao lado, o marido, espeleólogo, estalactite nos braços. Eu erecto e pelado, abraçado à consorte, sem uma explicação para lhe fornecer. Tirei o dedo devarinho, desencostei. Mas o vizinho, ensandecido com a situação, ergueu a pedra e deu-me com ela no toutiço.

Aquela era verdadeira e foi assim que morri.

 
 
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