NÃO PARECE
Luís Augusto Marcelino
 
 
Jamais poderia imaginar que este dia pudesse acontecer. Aconteceu, e ainda não sei muito bem como lidar com isso. Roubei. E posso adiantar que essa não é uma atitude prestigiada pela minha família. Nem por mim. Aliás, sempre critiquei quem tinha cometido uma loucura dessas. Mas vi o colar ali, na minha frente, e havia um monte de pessoas circulando pela festa. Umas quatrocentas pessoas, no mínimo. E entrei no banheiro feminino por uma casualidade. Eu era segurança e um bêbado tinha invadido o toalete das madames. Arranquei-o de lá como mandava o figurino: pedindo por gentileza, segurando o braço do ébrio tresloucado com toda a delicadeza que o ato poderia permitir, fazendo de tudo para não chamar a atenção. Havia fotógrafos da imprensa paulista. Entrevistadores de festa de bacana, com suas perguntas manjadas, seus sorrisos falsos e seus repentes histéricos. Eu achava que ganharia uma medalha de honra ao mérito depois de tirar o sujeito de lá. Meus chefes reconheceriam meu talento, afinal. Mas não. Ao voltar para o local avistei um brilho intenso sobre a pia de mármore escuro. Estava ali, bem na minha frente, um colar. Jamais tinha visto uma jóia assim tão de perto, pedindo para eu tirá-la daquela solidão perigosa. A primeira coisa que me veio à cabeça foi justamente pegá-la e sair perguntando para as madames de quem era aquela preciosidade. Em seguida, imaginei entregá-la para o chefe dos seguranças. Pensei mil coisas num espaço de tempo muito curto. Descartei a primeira idéia porque essas peruas – sabe como é... Uma delas poderia inventar que era a dona, e uma pequena fortuna daquelas não devia se destinar às mãos de quem não lhe pertencia. Entregar para o João Carlos também não seria uma decisão inteligente. Não que eu achasse que o Joca era desonesto. Mas os louros da atitude cairiam em seu colo. Eu ficaria chupando o dedo. Uma eventual recompensa iria parar no bolso do matuto, e não no meu. Tudo isso passou pela minha cabeça. E eu tinha que decidir. Mais ou menos como o atacante a segundos do pênalti. Podia bater na esquerda, na direita ou no meio. Eu tinha que bater a penalidade. Ou me omitir.

A meia hora seguinte foi a mais agonizante. Voltei para o meu posto e, de vez em quando, segurava o colar que adormecia no bolso do meu paletó preto. Devia estar pálido. Nem as mulheres exuberantes, nem as câmeras da TV, nem os flashes incessantes dos fotógrafos esquisitos tiravam meu pensamento do colar com as pedras verdes. Lembrei de um seriado que tinha assistido há muitos anos. Era a história dos bandeirantes paulistas. Deduzi que as pedras, verdes, fossem esmeraldas. Devem valer uma fortuna – concluí. Apertava-as para me certificar de que a jóia ainda estava ali, sob o meu domínio. Foi uma das poucas vezes na vida em que me senti superior. Eu tinha na palma da mão uma pequena fortuna. Capaz de acabar com um problema crônico da minha vida. Maria Luiza vivia reclamando das coisas que faltavam em casa. O fogão era velho. A geladeira não conservava os alimentos. A televisão do quarto das crianças tinha um chuvisco insuportável. Meu carro não saía da oficina. Maria Luiza sonhava com um celular. E reclamava todos os dias que não ia ao cabelereiro e à manicure há meses. "Precisa comprar um uniforme novo para o Bruno, Cardoso!" Parei de sonhar quando ouvi um burburinho à entrada do toalete feminino. Pensei que a dona do colar, enfim, tivesse dado conta de que o tivera perdido. Aproximei-me. Uma mulher loira, de uns quarenta anos, era confortada por um grupo de amigas mais ou menos da mesma idade. Cheguei bem perto. Apertei cada uma das três pedras como se fosse uma despedida. Nada de eletrodomésticos novos. O conserto do carro ficaria para as férias. As crianças continuariam indo para a escola com o uniforme remendado.

- E agora, como fico? – disse a mulher em prantos.

Segurei o braço fino da madame loira. As outras mulheres me olharam, condenando-me. Perguntei se podia ajudar, as pernas já trêmulas, a boca ressecada e o coração batendo em ritmo acelerado. Uma delas, a que parecia mais jovem, mandou-me largar da mãe. "O senhor pode nos dar licença?" Ouvi uma delas consolar a mulher, afirmando que homem é tudo igual. E que ela devia dar o troco. Afinal, não era justo que o marido trouxesse a amante na festa. Que aquilo era uma humilhação e que ela teria que se controlar, para não dar vexame. Foi então que percebi que a loira chorona exibia em seu pescoço sardento uma corrente de ouro branco. E um pingente que, à distância, pareceu ser um crucifixo. Aliviei-me, naquele momento.

* * * * *

A festa de aniversário do meu afilhado, Armandinho, bem que estava divertida. Foi em agosto, mas a noite estava agradável. Uns dezoito graus. Eu e a família chegamos por volta das oito horas. Trocara de carro e de emprego. Maria Luiza estava linda, dentro de um vestido bege. Além do presente para o garoto, levei um litro de uísque para Armando pai, meu compadre. Já tinham se passado mais de dois meses desde o episódio da festa nos Jardins. Bruno exibia, orgulhoso, seu aparelho dentário. Rodrigo mostrava para os amigos o Nike que tinha ganho sem mais nem menos. Nem era Dia das Crianças, nem aniversário, nem Natal. Meu compadre gostou da camisa que eu estava usando. Quis saber onde a comprei. "No shopping, compadre!" Minha sogra, ao me ver, abriu um sorriso que nunca tinha me dado. Começou a me elogiar em frente dos outros cunhados. Senti-me orgulhoso. Fiquei junto à roda dos amigos de juventude. Pipoca, Robertinho, Eliseu e Arnaldo. Relembramos as viagens ao litoral e as partidas de futebol memoráveis na quadra do Independência. À certa altura, começamos a comparar os modelos dos nossos celulares. O meu era o mais moderno, para minha glória. Pipoca não tinha celular, e percebi que se sentiu meio constrangido por causa disso. Disfarçou e foi dar uma olhada na churrasqueira. Ao voltar, pediu para eu fazer uma caipirinha. "Se não for você quem fizer, não tem graça!" – afirmou, sorridente. Orgulhoso, fiz teatro e disse que tinha perdido a prática. Diante da insistência de todos os amigos, fui para a cozinha. Armando me acompanhou e separou os ingredientes. O limão estava meio verde, o que não podia dar garantia de que a bebida ficaria boa. Separou o socador, o açúcar e a aguardente. Sua mulher o chamou. Ele disse para eu ficar à vontade. "Vai com Deus, querido!" Espremi o limão, misturei o açúcar, separei o gelo. Senti falta do coador. Caipirinha sem coar fica um porre! Procurei no escorredor. Encontrei sob ele uma corrente dourada. Também brilhava, como o colar que achei havia meses. Peguei a corrente. Olhei-a. Era tão bonita quanto a jóia que tinha me dado os meus novos bens. Linda.

- É falsa! – disse-me Veridiana, a mulher do Armando.

- Não parece, Veri... não parece...

 
 
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