ERA VIDRO
Lysander
 
 
"O anel que tu me deste
Era vidro e se quebrou
O amor que tu me tinhas
Era pouco e se acabou"

Quem não se recorda dessa quadrinha de infância, cantada nos coros e folguedos da meninice em meio ao riso sempre solto, aos rostos sempre rubros da alegria de apenas estar junto aos companheiros de brincadeiras? Alacridade, aliás, pouco condizente com a desventura prometida nesses versos, de que sequer principiávamos a suspeitar. Afinal, jamais se poderia exigir das primícias da existência que refletissem sobre o lamento ominoso daquele canto, a triste resignação de quem já não se sente amado, tendo-o sido algum dia. Ninguém em tal fase estaria em posição de concordar com Charles Aznavour, em quão triste é Veneza no tempo dos amores mortos. Para a juventude, na aurora da vida, o amor é contínuo, permanente - sempre há de estar lá, em forma de carinho, bem-querer, proteção.

Mas, como reza um velho ditado, todas as coisas boas necessariamente chegam a um fim. E alguém acaba por nos ministrar uma dura lição a respeito do verdadeiro significado daqueles versos. Normalmente esse tipo de formação fica a cargo do primeiro amor, o que é até razoável sob o aspecto prático: já que a lição terá de ser aprendida mais cedo ou mais tarde, que venha o quanto antes esse cálice!

O primeiro amor é aquela jóia preciosa que você encerra com o máximo cuidado e os mais intensos ciúmes num escrínio particular. Às vezes você nem se detém muito em considerar calmamente a gema: simplesmente admite de imediato seu valor intrínseco e a coloca no cofrinho. Carrega esse cofrinho consigo sempre, feliz de tê-lo ali do lado, mas ainda não examinando de muito perto a jóia, pois se contenta em pensar nela e evocar constantemente o quão preciosa ela é... Mais tarde, quando você ouve aquele nosso querido estribilho, especialmente a parte do amor que se acabou, resolve enfim tirar a pedra do escrínio, e não dá outra: era vidro!

Comigo foi Raquel, de olhos de jade. Engraçado: hoje até mesmo seu nome me parece ter uma certa qualidade vítrea. Soa como algo que se estilhaça de chofre, me fazendo pensar onde foram parar os cacos. Vem-me então, ainda sob o impacto da sonoridade do nome, o ímpeto de recolher e guardar esses cacos espalhados, chegando a ferir com pequenos cortes minhas mãos. Em seguida, lavo-me numa pia branquinha e vejo o sangue ir-se raleando aos poucos nos filetes de água... Como pode um só nome me colocar em tal estado de alma?

Percebi nosso tempo juntos como curto, exíguo, nem tanto sob o aspecto cronológico quanto pela rapidez com que passou - foi como um retorno àqueles folguedos da infância, de que falava há pouco. Raquel significava a felicidade em estado puro. Ela era só beleza, alegria e entusiasmo, e tudo combinado, o que chegava até a doer. Eu ficava como um cão, extático e doido de prazer com o dono, aguardando um sinal que indicasse o que deveria fazer em seguida. Não tinha meios de ao mesmo tempo desfrutar aquelas doses maciças de felicidade que ela me proporcionava, e conceber iniciativas que a agradassem. Então simplesmente a acompanhava pelo salão, sem me importar com a dança, pois qualquer coisa que fizéssemos juntos era maravilhoso. O brilho em seus olhos, de um verde-piscina diáfano, era para mim penhor seguro de que esse mundo era ótimo, mesmo. Não havia dúvida! Era o brilho de minha mais preciosa jóia...

A jóia, porém, ficou repentinamente baça. Acredito, hoje, ter optado por não conhecer dos sinais sutis que ela provavelmente enviou, indicadores do fim do amor. Para mim a felicidade continuava, renovada a cada nova descoberta que fazíamos. Cheguei mesmo a ser para ela um modesto mestre em literatura: iniciei-a em certos mistérios eróticos, inclusive na "sensação nova" que Basílio ensinou a Luísa. Um pudor de menina deixou Raquel inicialmente pouco à vontade com essa prática... Mas depois se entregou a ela, com a mesma doçura e paixão com que apreciava todas as demais. De seu corpo bebi sofregamente o néctar do prazer e do desejo. Impossível, pois, antecipar que ele me porejaria em iguais doses o fel mais amargo, de um travor que jamais cheguei a experimentar posteriormente.

Quando me comunicou que seu amor estava extinto, não acreditei. Não aceitei a idéia de que minha pedra preciosa era vidro. Cheguei a maldizer muito o Ourives, pedindo-Lhe que revisse a fortuna madrasta que tinha reservado para mim. Não adiantou nada, obviamente. Não se operou a transubstanciação que eu esperava. Perdi minha gema, afinal.

Era vidro, e se quebrou.

 
 
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