SEM JUSTIFICAÇÃO
Beto Muniz
 
 
Desde criança eu sonho em ficar rico. Lembro que, aos cinco anos, no natal ou no dia da criança, eu ganhei um caminhão de bombeiro vermelho com mangueiras brancas, luzes azuis e sirene. Era grande, quase do meu tamanho, e funcionava com duas pilhas Ray-o-Vac (as amarelinhas). Meu pai não se deu ao trabalho de embrulhar o presente. Ele cruzou a sala em minha direção carregando o brinquedo nos braços. As sirenes e luzes estavam ligadas enquanto ele vinha passo a passo se deliciando com o brilho dos meus olhos.

No dia seguinte o garoto vizinho, segurando uma bola de plástico, babava enquanto conferia, com os olhos, o meu presente:

- Isso é um presente de gente rica!

Eu me senti rico. Rico e feliz!

Quando a primeira rodinha se soltou, dois dias depois, comecei a perceber que eu não era rico coisa alguma... Papai ficou decepcionado com meu pseudodescaso para com o presente que custara tanto, e durante muito tempo fez questão que eu me sentisse culpado pelo brinquedo ter se quebrado em tão pouco tempo.

Também nem sei por quê estou relembrando esse episódio, não tem nada a ver! Aliás, desde o amanhecer que estou revendo minha vida, meus conceitos, meus medos, minhas verdades e mentiras... Pareço e estou revoltado contra tudo e todos. Para ser sincero, bem antes de amanhecer o dia eu já estava decidido a me rebelar contra a rotina. De repente abri os olhos, vi o teto branco do meu quarto e resolvi: "Dane-se o sistema". Levantei e não fui trabalhar. O teto permaneceu impassível diante da minha decisão. Impassível e branco.

Levantei e fui pro banheiro, descalço como compete a um rebelde, assuntei minha cara amassada no espelho e concluí que todo rebelde deixa a barba por fazer. Quase que não escovo os dentes, mas não sou um rebelde porco e por isso acabei escovando. A língua não! Gargarejei só uma vez.

Seguindo a rotina de anos peguei minha leiteira, coloquei água e iniciei o ritual do capuccino. Lembrei que era um neo-rebelde e desliguei o fogo. Tomei refrigerante sem gelo e sem gás e comi um pedaço de pizza de dois dias. Fria! Antes das oito horas eu já havia subvertido várias vezes os meus costumes matinais. Exultei de felicidade quando pude extravasar minha rebeldia na orelha da esposa:

- Ué! Hoje pela manhã você não tinha uma reunião agendada? - senti que ela me experimentava.

- Dane-se o trabalho! Dane-se a rotina! Dane-se o dia a dia! Danem-se os rituais do meu mundinho repetitivo! Quero me sentir livre para escolher o que fazer ao menos um dia e não tente me impedir de hoje eu ser eu mesmo!

- Só não pense que vai faltar à...

- Dane-se a consulta! Eu me sinto forte como um... um urso! - não quis falar touro porque lembrei que bovinos são dotados de chifres.

- É, você tá parecendo um urso mesmo. Amarrotado e desgrenhado feito um urso, mas vai ao médico, sim senhor!

- Não enche. Vou se quiser!

Não fui contestado e me senti dono do meu nariz!

Foi a primeira vez, em vinte e um anos, que faltei no serviço sem avisar antecipadamente e sem intenção de apresentar uma justificativa. Pela primeira vez em décadas estava disposto a fazer, num dia útil, só o que me desse na telha. Sem horário de almoço, reuniões ou programas a cumprir, o dia seria só meu. Era o meu domingo em plena quarta-feira.

Resolvi ir até o centro da cidade. Por nada, só para ver o movimento. Não fui de carro. Queria ser mais um no meio da multidão e utilizei ônibus e metrô. Não vesti meu terno. Nem mesmo roupa social. Sequer um sapato... Fui com uma sandália que tinha aposentado a mais de ano. A calça jeans estava manchada de tinta amarela, saldo de uns reparos domésticos que eu havia tentado realizar em algum dia no passado. Camiseta de uma promoção qualquer que eu tinha ganhado num evento... Sentia-me livre e descompromissado como nos tempos de adolescente bancado pela mãe, fingindo que procurava emprego de oficce-boy. No centro de São Paulo vagabundeei por algumas horas. Andei entre os camelôs da 24 de Maio, Dom José, Barão, Chá, Direita, Álvares Penteado e até dentro do Pátio do Colégio. Se não fossem as dores nas pernas lembrarem meus quarenta e nove anos, ficaria zanzando por mais duas horas. Quando deu fome lembrei da minha esposa fechando o portão:

- Aceita uma sugestão?

- Manda.

- Você tá muito estressado, com o peso do mundo em suas costas. Faça um favor a si mesmo: relaxe um tempo! Se quiser eu tento encaixar você numa sessão de massagem com a Simone.

- Eu, estressado? Logo eu? Estresse é coisa de perua e fresco...

- Só quero que você esqueça tudo por uns minutos... Que tal comer uma bela duma lasanha à bolonhesa no jantar?

- COMER??? Você só pensa em comer! Conversa mais besta essa.

- Não vá comer besteiras!

Bebi mate com leite e comi churrasco grego bem gorduroso, bem centro de São Paulo, bem assassino! Parecia mesmo ter voltado aos dezoito anos, tempo em que comia sanduíches no horário de almoço, já que a mãe não caía mais na minha conversa e o salário de auxiliar de expedição era uma mixaria. Entrei no cinema em pleno meio dia. Primeira sessão de um filme de quinta, onde duas mulheres competiam numa modalidade confusa: gemidos eróticos. Abandonei o filme antes do fim e andei mais uns minutos sem rumo certo até concluir que ser rebelde em casa era menos cansativo. No ônibus, que talvez fizesse trajeto pela minha rua, meus pés doíam e um vidro da janela trepidava me causando irritação excessiva. Tentei colocar um papel dobrado no trilho da janela para eliminar o barulho, mas não consegui. Desci bem antes de chegar perto de casa e peguei um táxi. Estava visivelmente irritado por nada e o taxista percebeu isso na primeira tentativa de conversa.

Novamente em casa decidi tomar uma ducha, a esposa ficou sem resposta quando perguntou se estava tudo bem. Depois fiquei de calção zapeando a programação da tarde na TV, arrependido por ter dispensado uma sessão de massagem com a fisioterapeuta da família. Antes das dezesseis horas minha esposa trouxe uma troca de roupa. Ofereceu sem falar nada, muda, e eu vesti sem protesto na sala mesmo. Ela pegou a bolsa, documentos, chaves e disse decidida:

- Eu dirijo!

- Mmmhf...

A caminho do consultório médico estava emburrado, quieto, bicudo. Não enxergava a paisagem e toda minha pretensa rebeldia viajava afundada no banco do passageiro. Minha esposa, companheira por quase vinte anos, sabe respeitar meus momentos, sabe que eu precisava de silêncio e que naquele exato instante carregava alguns dos meus medos. Talvez soubesse até que estava pensando no presente de Natal que ganhei do meu pai aos cinco anos de idade, o caminhão de bombeiro, vermelho com mangueiras brancas, luzes azuis e sirene. Acho mesmo que sempre penso nesse episódio quando fico inseguro.

Ela sabe de mim, muito mais que eu. Sabe que por mais ridículo que possa parecer, esse negócio de exame de próstata me incomodava mais pelo medo do resultado que exatamente pelo exame. E que, se eu pudesse, daria meia voltaria para casa, para meu terno e minha rotina de gerente comercial. Tudo na mais completa ignorância sobre meu corpo. Mas ela sabe também que, medo por medo, sou aprendiz de hipocondríaco e o medo de ter uma doença fatal escondida em mim é bem maior. Por isso eu faria o exame.

Ah, se não fosse esse medo maior! Se eu fosse um pouquinho mais rebelde! Se eu não fosse tão responsável para com os meus! Se eu não fosse tão amado... Agora, a falta no trabalho ficará sem justificativas! A primeira em vinte e um anos. Imagina se eu vou dizer pra alguém por que foi que faltei!

 
 
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