PRESENTE SEM PREÇO
Beto Muniz
 
 

(carta ao meu pai)

O dia das crianças tem um significado especial para mim. Ele me devolve lembranças antigas, duma época em que eu aguardava ansioso o dia doze de outubro. Não era pelo presente de plástico. Era pelo meu pai, que dias antes já avisava com sua voz grave:

- Terça-feira é dia da criança.

- E o senhor vai trabalhar pai?

- Em hipótese alguma!

Eu nem imaginava o significado real da palavra hipótese, mas para mim já significava que não, que ele não iria. Significava também que o almoço seria especial. Eu e meus irmãos ganharíamos uma garrafinha de refrigerante cada, e minha mãe teria capricho especial com a sobremesa. Um bolo. Sempre um bolo.

Pela quantidade de moradores a nossa casa era pequena, humilde, dois quartos, sala, banheiro e cozinha. Porém reinava certa harmonia. Brigas, somente as inevitáveis numa família com seis crianças. Mas uma coisa todos nós aprendemos desde cedo, antes do jantar todos deveriam estar de bem. Nada de brigas e mágoas levadas para a mesa. Mamãe dizia que raiva ou mágoa causava indigestão. E nós acreditávamos.

Nosso quarto tinha três beliches, uma de ferro para os dois filhos maiores e duas de madeira para as duas meninas e os dois meninos menores. Quem ainda fazia xixi na cama dormia embaixo, mas todas as seis crianças ambicionavam dormir no segundo andar. Tanto que na calada da noite aconteciam as negociações:

- Eu te dou meu gibi do Falcão.

- Não quero...

- Deixo você tocar minha gaita durante metade do dia!

- Deixa mesmo?

- Deixo, pode pegar agora pra garantir.

- Então tá, mas traz o seu cobertor e seu travesseiro.

E assim trocávamos de lugares. E o dono da gaita dormia no andar de cima apesar do risco de molhar a cama e o vizinho do andar térreo... Detalhes.

Na terça-feira, assim que o sol nascia, já estávamos todos acordados. Seis filhos, seis ansiedades mirins a espera que meu pai entrasse quarto adentro com a caixa de papelão. Quando ele entrava todos fingiam dormir e ele fingia acreditar. Depositava um pequeno embrulho bem ao lado de cada travesseiro. É claro que o espaço sobrando no travesseiro era proposital. Os corpinhos infantis estavam espremidos no lado oposto da cama, contra as paredes, deixando o maior espaço possível para o presente que viria. Depois era hora das cócegas. Assim que terminava de distribuir os pequenos embrulhos, meu pai fazia cócegas no último a receber o presente. Era a senha para a farra começar. Geralmente terminava com meu pai no chão e todos os seis filhos em cima dele. Os presentes esquecidos nos travesseiros.

Mamãe entrava justamente quando papai pedia arrego e se entregava. Era hora de lavar o rosto, escovar os dentes e tomar o café. Nesse dia tinha Nescau. Ou Toddy. Achocolatado comprado especialmente para esse dia e que duraria mais três ou quatro dias. Os presentes só poderiam ser abertos depois do café, quando todos fossemos pra sala comemorar os brinquedos ganhos. Mas era impossível abandonar o embrulho no quarto e em fila, para lavar o rosto, todos exibiam seus pacotes tentando adivinhar o conteúdo. Sabíamos que para os meninos seriam carrinhos de plástico, e para as meninas bonecas articuladas e com roupinhas estampadas. Sempre iguais, para não dar briga. Para evitar encrencas nos dias seguintes, cores diferentes nas roupinhas e nos carrinhos. Restava aos mais velhos tentar convencer os menores que nossas cores eram mais bonitas que a deles. Eu os convencia, mesmo que meu carrinho fosse verde palmeiras. Cor que detesto.

Nesse dia só havia uma proibição: Sair de casa. Papai trabalhava todos os dias, de segunda a sábado. Tinha semana que nós, os filhos, não víamos ele sair e nem chegar e era comum ele fazer hora extra no domingo. Essa proibição nunca incomodou nenhum dos filhos, aliás, era o dia mais feliz do ano, depois do dia de aniversário, que era quando o aniversariante reinava na casa e podia, inclusive, faltar na escola, se quisesse. Os anos foram passando e os dias da criança se repetindo iguais. Brincadeiras, jogos, disputas, risos e harmonia se repetiam e a gente sabia quando acabaria. De um filho para outro a diferença de idade era um ano. Assim, o caçula tinha seis e a mais velha tinha doze anos. Meu pai decretou que quando o caçula tivesse doze anos, deixaria de existir o dia da criança.

Quando o caçula tinha sete anos, meu pai não veio depositar os presentes no travesseiro. Os seis filhos estranharam a falta, pois sabiam que era dia das crianças, sabiam que deveriam se espremer contra a parede cedendo o maior espaço possível para o embrulho que viria. Sabiam que não deveriam se levantar (mesmo que a bexiga estivesse estourando). Nós sabíamos tudo isso, mas a demora se tornou longa demais e a curiosidade venceu a paciência. Levantamos sem fazer ruídos e cochichávamos entre nós decidindo o que fazer:

- Será que o pai não acordou?

- Acho que acordou, eu ouvi barulho na sala.

- Será que ele não vem trazer os brinquedos?

- Acho bom a gente sair do quarto e ir perguntar...

- Vai você.

- Sozinho eu não vou!

- Então vamos todos.

Fomos. Em fila indiana nós, os seis filhos, entramos na sala e tivemos uma enorme surpresa. A maior de nossas vidas, até então. Duas bicicletas, três skates, três bonecas que falavam, choravam e fechavam os olhos. Duas bolas, uma de futebol outra de vôlei e ainda um pacote de balas toffee. Papai e mamãe sorriam. Nós estávamos apatetados sem saber por onde começar. A bicicleta era um sonho, há muito que a gente pedia uma, e meu pai fez questão de comprar duas. Uma para os meninos e uma para as meninas, a das meninas tinha cestinha que era para carregar a boneca. Nesse dia, pela primeira vez num doze de outubro, meu pai sugeriu para que a gente fosse brincar na rua. Fomos. Cada qual levou seu brinquedo. Na rua, além de exibirmos nossos skates ou bonecas, nos revezávamos nas bicicletas. Nos portões os pais vigiavam seus pimpolhos. Acho que foi a primeira vez que vi papai no portão.

Desse dia em diante, todos os dias da criança, natais e aniversários, nós tínhamos permissão para brincar na rua com outras crianças e seus brinquedos, mas nunca mais tivemos papai o dia inteiro para nós inventando brincadeiras e jogos. Ele passou a vigiar do portão da casa, que logo foi trocada por outra maior. As meninas ganharam um quarto e os meninos outro. Papai deixou de trabalhar aos sábados e domingos. Deixou também de tornar o dia da criança um dia especial. As cócegas acabaram. Espremer o corpo contra a parede para deixar espaço no travesseiro também foi esquecido. Apenas o almoço continuou sendo especial e a sobremesa também continuou sendo um bolo caprichado. Mas isso porque dia doze de outubro é aniversário da minha mãe!

Só depois de adulto compreendi o meu pai. A situação financeira era precária e ele não queria que os vizinhos nos exibissem seus presentes maravilhosos enquanto a gente tinha apenas carrinhos de plástico e bonecas simples nas mãos. Esse era o motivo pelo qual inventava brincadeiras o dia todo e nos preservava dentro de casa. Ele nos protegia do exibicionismo comparativo das outras crianças com seu carinho, cócegas, abraços e brincadeiras. É só por isso que o dia das crianças tem um significado especial para mim. Todo dia doze de outubro eu lembro o pior negócio que fiz na minha vida: aceitei trocar um dia inteiro de carinhos paterno por bicicletas, bolas e skates. E balas!

Meu pai vai saber através dessa carta que não precisava ter vergonha de nossa pobreza. Não precisava ter feito proposta tão indecente! Aqueles dias eram o melhor presente que um pai poderia dar ao filho, e papai conseguia presentear seis filhos ao mesmo tempo. Pena que na época eu quisesse tanto aquela bicicleta e ele - equívoco comum, não sabia que alguns presentes não têm preço.

(São Paulo, 12 de outubro de 2001)

 
 
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