BOA NOITE, CINDERELO
Ana Peluso
 
 
Noite boa é aquela que começa cedo e termina tarde. De preferência tão tarde, que seja cedo novamente. E naquele dia, ou melhor, naquele fim de noite, quase dia, Reynaldo estava frito, sabia.

Também, quem mandara ele ficar até tarde, ou melhor, até cedo, bebendo no bar do Alfredo?

O problema é que Reynaldo morava com o avô, em uma cidade do interior de Minas, onde malemá cursava administração de empresas, pois mais faltava do que comparecia às aulas. E fora mandado para lá pelo próprio pai, que já não sabia como dar um jeito na vida boêmia do filho.

- Melhor que teu avô termine de te criar, porque eu e sua mãe já não sabemos o que fazer com você. Ele é duro. Vai te colocar nos eixos. Missa todos os dias, horas cronometradas de estudo intensivo. Vai ser bom pra você. Foi pra mim. Tem de funcionar com você. Só não minta para o velho, porque ele é esperto. E quando não, sempre conta com a sorte.

Com essa recomendação, Reynaldo fora morar com o avô paterno. Um homem sério, mas carinhoso. Na primeira vez que chegara tarde, percebeu que o carinho do avô terminava no momento em que era desobedecido. E o pau quebrou feio, porém sem ruídos, porquê o avô era uma pessoa refinadíssima. Trêsrosários pela Virgem Santíssima, três vezes ao dia. O castigo foi cumprido e a promessa de nunca mais colocar o pé fora de casa depois das dez da noite estava ainda em estado de tentativa, o que lhe rendeu mais três dias de rosários intermináveis. Em um deles, mal rezou, porque ainda se encontrava numa ressaca danada. Mas mesmo assim ficou dentro do quarto o tempo necessário para a reza dos três terços.

E agora sabia que ia enfrentar uma bronca daquelas!... E talvez a promessa de devolve-lo aos pais fosse cumprida.

- Não sei como teu pai não enfartou ainda, Naldo. No tempo dele, as coisas eram diferentes. Por isso é um grande homem, hoje! - dizia o avô, cheio de orgulho do filho mais velho. - lembrava as palavras do avô, enquanto pensava no que fazer.

Antes de ir para casa, já que estava ferrado de qualquer forma e a hora era adiantada, passou na casa do Eduardo, uma república chinfrim onde moravam doze marmanjos que um dia seriam - ? - grandes homens de negócios. O Eduardo abriu a porta com a cara amassada, todo despenteado e sem entender nada, deixou o Naldo entrar.

- Dú, preciso tomar um banho, fazer a barba e preciso de roupas limpas.

- Mas cara, sou mais gordo que você...

- Então pega do Jorge. Depois eu explico. Ou você me ajuda, ou estou frito. Você conhece meu avô. Ele prometeu que se eu chegasse tarde novamente em casa, me mandaria de volta pra minha casa e é tudo que não quero.

- Tá bom... Você conhece o banheiro, conhece o guarda-roupa. Te vira, que eu tenho de me trocar e ir agüentar aquela peste da Dna. Helena. É meu trabalho, e não sou filhinho de papai, nem netinho de vovô como você. Mas vê se não bagunça as coisas do Jorge, porque ele fica uma fera quando alguém mexe nos armários dele. Ele viajou e volta na segunda que vem, e se perceber que algo está fora do lugar, me esgana.

E o Naldo saiu da república impecável. Limpo, cheiroso e com as roupas do Jorge, que cursava direito e andava alinhadíssimo, como se já trabalhasse no fórum da cidade.

Ao entrar na casa do avô e fechar a porta, ouviu os passos arrastados do velho descendo as escadas e ficou de costas.

O velho se prostrou-se atrás dele, e falou:

- Ué, menino, agora você sai com uma roupa e volta com outra? Ou aprontou alguma coisa com alguma dona e teve de pegar a roupa do marido dela emprestada? - ironizava o avô.

Reynaldo virou-se para o avô e olhando-o cinicamente, soltou essa:

- Imagina, vovô. Eu não estou chegando. Estou saindo. Ontem quando cheguei, por volta das nove e meia, vi que o senhor dormia e não quis incomoda-lo. Então fui para meu quarto ler um pouco antes de dormir.

- É mesmo? - disse o velho apoiando em sua bengala. Olhar sereno. - Então como me explica sua cama arrumada?

- Eu mesma a fiz! Tá vendo vovô. Estou mudando...

O velho sentou-se, apoiando a mão na bengala. Acendeu um charuto, hábito que cultivava desde moço, fumar antes de se alimentar, e olhando para o neto, balançou a cabeça de um lado para o outro.

- Pois pode tratar de arrumar tuas coisas. Você volta hoje mesmo pra casa do teu pai. E peço a Deus que ajude meu filho acabar de te criar, porque você além de boêmio é mentiroso. Nunca será um verdadeiro homem. Como seu pai e seus tios.

Naldo, sem entender nada, fez o que o avô pediu. Quando desceu com as malas ainda lançou um olhar de interrogação para o avô, que permaneceu mudo.

De volta à casa dos pais, na capital, Naldo não entendia como seu plano pudera dar errado. Ele agora era obrigado a trabalhar em uma das empresas do tio, como auxiliar de escritório e pagar seu cursinho para novo ingresso na faculdade (a terceira, diga-se de passagem) e tinha a vida totalmente controlada pelo pai e pelo tio. Este herdara o gênio e a personalidade do avô. Nem usar o telefone da empresa, ele podia... Que droga.

Alguns meses depois recebeu uma carta do avô. Surpreendeu-se. Não via a hora de acabar o expediente, chegar em casa e ler o que tinha dentro do envelope, pois no escritório do tio, sequer revista podia ser lida. Nem de mercados correlatos.

A coisa era dura mesmo.

Quando chegou em casa, foi direto para seu quarto e abriu o envelope, que já estava amassado de tanto ele apertar entre as mãos, o dia todo, dentro do bolso do paletó. Agora era obrigado a usar terno... Mais essa.

O que ele imaginava ser uma longa carta cheia de broncas, era apenas uma folha com algumas linhas, que ele leu rápida e imediatamente.

Dizia:

"Boa noite, Cinderelo.

A mentira tem perna curta, e a boemia tem vida longa. É preciso não abusar de nenhuma, porque ambas te levam para o buraco, ou pior, de volta pra casa dos pais, sob o julgo do tio.

Apenas para que saiba como descobri que mentia naquela manhã, e não acabe arrancando os poucos cabelos que ainda existem por sobre a tua cabeça, lhe digo que seu amigo Jorge esteve em casa naquela noite que você disse ter chegado cedo e me encontrado dormindo. Ele estava saindo de viagem e veio lhe devolver o livro que te pediu emprestado na semana anterior. Eu olhei para o livro deixado em cima da mesinha, após a ida do educadíssimo Jorge, e resolvi dar uma olhada. Quando dei por mim, eram três da matina e me amaldiçoei por ter ficado acordado até tarde.

A única coisa boa que me aconteceu naquela noite foi o conteúdo do mesmo. Na minha época essas coisas não existiam. Sabe como é...

Se você sabe do que estou falando, deve saber do conteúdo do livro. E se sabe o conteúdo do livro, sabe que não dá para dormir antes de termina-lo.

Agora, meu amado neto, dou-te um último conselho:

Nunca pense que um dia não será pego. Sua fada-madrinha pode ter lhe transfomado num Cinderelo matutino, mas seus amigos não querem que você case com a princesa, pelo jeito. E para sua sorte.

Espero que não esteja bebendo, fumando, fornicando e freqüentando lugares escusos, porque esqueci de te dizer enquanto morou comigo, que de todos os filhos que ajudei a colocar no mundo, teu tio é o que mais puxou a mim.

Se te pegar fazendo algo errado, te manda para um seminário, o que fará com que reze muito mais do que enquanto morou com esse velho.

Com amor.

Seu avô"

 
 
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