POR HÁBITO
André Koloszwa
 
 
Quase nada havia mudado. O incenso ainda queimava sobre a prateleira da estante. O videocassete ainda marcava 12:00 e piscava. Nunca soube programá-lo (sempre me perguntei se alguém com mais de 40 era capaz de fazê-lo!)... Os peixes continuavam a se beijar. Estranho... nunca reparei que faziam isso. Mas o nosso retrato sobre o criado-mudo havia sumido.

Fui até o quarto. A porta do armário estava aberta, e mostrava que não havia nada dentro dele. O lençol da cama ainda estava desarrumado, e podia ver um fio de cabelo na fronha de seu travesseiro. Acendi um cigarro e fui para a janela, por hábito. Ela não gostava que eu fumasse, especialmente dentro de casa. A janela era um dos poucos lugares permitidos.

A janela... ah, grande companheira. Quando olhava para fora, via um pequeno trecho da rua, com algumas árvores que insistiam em empurrar as pedras da calçada com suas raízes. Podia ver também algumas janelas do pequeno prédio em frente, com suas cortinas quase sempre cerradas e com suas sacadas ladrilhadas, às vezes ocupadas por outro fumante. Mas quando eu me apoiava de costas à ela, fazia questão de ignorar as pessoas passando, os fumantes e as raízes salientes. Queria apenas olhar ela dormindo em nossa cama, minha cama. Ela deitava-se de lado, com a ponta de seu dedo indicador em seu lábio inferior. Eu achava aquilo lindo. Deixava o seu rosto de menina com um ar mais angelical ainda.

Sentei na beira da cama, tirei meus sapatos. Eles estavam bem polidos, pela primeira vez. Fiz questão de mandar engraxa-los para esta noite. Era para ser uma noite especial... um jantar, palavras românticas e juras de amor refeitas por mais um ano, válidas por toda eternidade. Mas não chegamos a sair de casa, juntos.

Ao chegar do trabalho, encontrei-a chorando. Perguntei o que havia acontecido. Passando a mão no rosto para secar as lágrimas, ela me disse que não podia continuar comigo. Que não a merecia. Sentei-me a sua frente e quis saber o que estava havendo. Começou a me contar sobre alguém que ela havia conhecido há alguns meses atrás, um colega de trabalho. Contou me que estavam saindo juntos. E que não me amava mais como antes. Pedia-me desculpas e dizia que a última coisa que queria era me magoar. Falava que o problema não era comigo, e sim com ela. E voltou a chorar.

Não sei que fisionomia esbocei em meu rosto naquele momento, mas sei que não disse palavra sequer. Um turbilhão de sentimentos se passou dentro de mim. Decepção, ódio, amor, medo. Medo de perde-la. Ela se atirou ao chão de joelhos e pedia perdão, com a cabeça em meu colo. A afastei e balbuciei: "saia daqui!".

Como poderia ter feito aquilo comigo? Percebi que tinha uma desconhecida em minha frente. Tanto tempo juntos, e descobri que aquela em minha frente não era a pessoa por quem eu havia me apaixonado.

Levantei-me e saí, deixando-a sozinha. Fui caminhando sem rumo por entre as ruas do bairro. Acho que chorei algumas vezes. Comprei cigarros e, quando retornei, ela já não estava mais lá.

Agora, tiro minha roupa e me deito. Apago as luzes e sinto seu cheiro nos lençóis. "Boa noite, Maria" - disse, por hábito.

 
 
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