NÓS NOS AMÁVAMOS
Beto Muniz
 
 
Maria foi minha primeira namorada.

Era um namoro sem malícias, sem insinuações e sem sexo. Eu tinha dez anos e Maria nove. Alunos na mesma e única escola da vila, nós freqüentávamos o mesmo período em classes separadas. Eu cursava a quarta série e ela a terceira e nos encontrávamos no recreio para dividirmos nossas merendas. O primeiro beijo foi sob a sombra da paineira que havia no fundo do pátio escolar. Beijo rápido quase roubado, apesar do consentimento com algumas horas de antecipação. Foi dessa paineira que eu tirei a semente para o trabalho de ciências, que era plantar um feijão numa lata de extrato de tomate e acompanhar o desenvolvimento da plantinha. Foi por causa do beijo que eu troquei a semente de feijão por uma de paineira. A experiência escolar foi transplantada para o quintal da minha casa quando a latinha ficou pequena. As coisas eram assim, puras e belas. Nós nos amávamos.

Maria era uma menina bonita, tinha cabelos castanhos bem escuros e olhos negros. Não eram castanhos, eram negros mesmo. O sorriso era branco. Ela me olhava como que pedindo para eu ser feliz; "seja feliz ao meu lado". Eu seria tudo que ela quisesse e se ela me queria feliz, eu era. Feliz só por estar ao lado de Maria. Nós nos amávamos.

Troquei com ela o primeiro presente de dia dos namorados. Dei um sabonete que aparecia em comercial de televisão e ganhei uma caixa de lápis coloridos. Seis unidades. Ela confessou, anos depois, ter dormido vários meses com o meu presente embaixo do travesseiro. Eu lembro ter desenhado um toureiro espanhol numa cartolina exibindo a ela os meus dotes e a utilidade do presente. Nós nos amávamos.

Foram os seios de Maria que eu vi, peguei e beijei primeiro. Pequenos. Minúsculos. Acho mesmo que ainda nem existiam como seios. Mas Maria queria se sentir mulher e exibiu-me o peito liso que eu, com mais curiosidade que desejos libidinosos, beijei como se fossem os seios fartos de uma moça. Flertei com seu equívoco e autentiquei sua pequena ilusão. Eu era só um menino e Maria uma criança, mas durante os beijos trêmulos naqueles bicos pouco túmidos ela era uma mulher e eu o seu homem. Nós nos amávamos.

Aos treze anos Maria quis e eu fiz com ela um curso de datilografia. Saíamos da escola de mãos dadas a caminho do local onde martelávamos, alternadamente, as teclas da única Olivetti disponível. Eu só queria estar com Maria e para isso não media sacrifícios; engraxava sapatos pela manhã para pagar as aulas de datilografia. Depois do curso, anoitecia, eu levava Maria em casa e ficávamos no portão até que seu pai a chamasse. Conservávamos o mesmo amor de antes, mas os beijos foram substituídos. Os carinhos também foram trocados. Os seios de Maria já apontavam discretamente o horizonte e minhas mãos os tocavam com desejos autênticos. Maria me ensinou a beijá-los e tocá-los da forma como ela preferia e, em troca, ensinei suas mãos me tocarem até o gozo. Nós nos amávamos.

O último presente do dia dos namorados que dei para Maria foi um perfume barato. Acho mesmo que era desodorante. Para Maria bastava. Eu ganhei algo que nem lembro... Para mim só importava ter Maria ao meu lado. Eu cantava ao mundo, pequeno mundo que era a vila, meu amor por Maria. Eu roubava uma rosa e deixava na janela do quarto dela enquanto Miguelzinho babava na flauta e Humberto dedilhava no violão: "menina, que um dia conheci criança, me aparece assim de repente, linda virou mulher...". A serenata se tornou um vício que me consumia as madrugadas de sábado. O flautista não tinha namorada, então, numa semana cantávamos para o amor do Humberto e na outra eu escalava o muro para depositar uma rosa na janela da Maria. Nós nos amávamos.

O pai de Maria era militar. Foi transferido de cidade e Maria também. Eu já não era tão menino, mas adulto também estava longe de ser. A dor foi tão grande que seis meses depois fugi de casa para ir rever Maria. Dela tinha apenas o endereço que chegava nas cartas semanais. Calculei mal a viagem e para desespero de Maria, e de minha mãe, vaguei quarenta e seis dias pelas estradas do Triângulo Mineiro sem rumo e sem dinheiro. Várias caronas depois voltei para casa sem conseguir encontrar Maria. Não importava a distância, ainda nos amávamos.

As cartas foram rareando junto com a dor que eu sentia. O amor ficou acordado por mais tempo, e enfim dormiu quando outra menina ocupou o espaço vago entre meus braços. Espaço que ainda era de Maria. Só não dormiu a saudade, que eu descobri ser mensurável, tamanho era o pesar pela ausência que eu sentia. Os beijos eram de outra, mas eu ainda amava Maria.

Esqueci Maria por algum tempo, até o dia em que ela quis que eu a relembrasse. Numa tarde de junho chegou um pacote pelo correio, a letra redonda, inconfundível, que há muito eu não via, estava no verso informando o novo endereço de Maria. Junto uma carta dizendo que voltara para a região, poucos quilômetros de onde eu estava. Eu tinha dezessete anos e uma moto, pareceu-me que todos caminhos levavam à Maria. Peguei a menor reta entre nós e fui. Viajei com o coração a galope, mais do que nunca eu amava Maria.

O reencontro foi exato. Maria correu, pulou em meu pescoço e me abraçou como se daquele abraço dependesse sua vida. Os cotovelos dela ultrapassando meus ombros e, talvez, com medo que eu escapasse, ainda enlaçando meu pescoço com as mãos trocadas nos próprios antebraços. O rosto de Maria amassou minha orelha e os seios, agora fartos, casaram com as batidas do meu coração. Eu a enlacei pela cintura fazendo seus pés perderem o contato com o chão. Foi meu primeiro abraço fechado: ela fechada em mim e eu solto em Maria. Pareceu-me que ainda nos amávamos, mas ela não me beijou a boca. Maria saiu do abraço, me apresentou o namorado e eu morri um pedaço.

Mesmo hoje, dezenove anos depois, não lembro ter sentido dor mais lancinante que aquela que me saiu rasgando o peito. Eu gemi diferente de quando Maria me tocava. Foi um gemido parido. Um som gutural, um desarranjo nas cordas vocais semelhante ao de hoje quando minha irmã ligou para dizer que Maria se foi. Não soube me dizer a causa, sabia apenas que Maria se foi durante a noite. Morreu dormindo. Maria, que eu amei e que me amou, resolveu que essa manhã não acordaria, que a noite passada lhe seria eterna.

Há quatro anos atrás, eu revi Maria. Em visita a sua cidade procurei por ela. Encontrei uma mulher bonita, com os mesmos olhos negros e o riso branco de Maria. Apesar da estranheza do marido e filhos, o reencontro foi exato como sempre - Maria pulou no pescoço do desconhecido que bateu ao portão e repetiu o abraço fechado. Depois chamou os filhos e marido e apresentou-me interrogando: "Sabe quem é?". Os filhos sorriram como se me conhecessem desde sempre. O marido apertou-me a mão e sumiu porta adentro. Sabia de mim desde sempre.

Senti que ainda tinha amor por Maria e acarinhei seus cabelos castanhos escuros, que não me pareceram os mesmos de quando ela era criança. Sob a blusa fina os contornos dos seios, os primeiros que beijei, também estavam diferentes, frouxos, arriados, marcados pela fome dos filhos que ela quis ter com outro homem. Visão e constatação se transformaram num ciúme descarado e numa vontade de ir embora cinco minutos depois da chegada. Na despedida Maria apontou uma paineira, única sombra no quintal, que me pareceu conhecida, perguntou se me recordava da aula de ciências e fez sua última declaração de amor: "essa é neta daquela que terminou plantada na sua casa". Só então entendi que o tempo todo Maria me amou. Juntos descobrimos sobre amor e felicidade para depois, cada qual no seu canto, conhecer sobre saudade, dor... Recordei sem amargura Maria soltando suas amarras e se perdendo de mim, ganhando o mundo.

Após nosso último encontro apaguei as dores nas minhas lembranças de adolescente, resolvi relembrar nós, eu e Maria, como sendo o maior e melhor amor testemunhado pela nossa antiga vila. Nós nos amávamos.

- Boa noite Maria... Mas não pense que não me dói deixá-la dormir em paz.

Outra vez fico sozinho, definitivamente perdido, distante dos caminhos que levam até Maria, longe de todos que velam por ela. Só me resta um céu sem estrelas e essa despedida temporária.

 
 
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