BOA NOITE, MARIA
Rita Caetano
 
 
Talvez ela tivesse seus 5 ou 6 anos. Não me lembro bem. Era pequena, bem pequena. Espevitada, linda, olhos brilhantes e francos. Nasceu com franqueza no olhar. Se gostava, os olhos brilhavam, quase gritavam de alegria. Se não gostava, eles se tornavam embaçados e frios. Impressionante mesmo ver aqueles olhos que falavam mais que a boca. Ainda me lembro da bisa abrindo os braços para recebê-la no portão e dizendo: "lá vem a minha menina de olhos de estrela".

Ah, sim, desculpem. Esqueci de dizer que estou falando da minha filha, a do meio. Coruja, eu? Imagine!

Mas voltemos ao assunto: a franqueza da menina. Como já disse, estava lá pela casa dos 5 ou 6 anos. E não havia quem a fizesse deixar de prestar atenção aos assuntos que lhe causassem interesse. E quando o interesse despertava, os olhinhos brilhavam ainda mais, os ouvidos ficavam aguçados e – imagino eu – o cérebro disparava.

Numa reunião em nossa casa, conversávamos eu e alguns amigos, sobre os tempos de colégio e de faculdade. Falávamos daqueles anos de silêncio imposto, de lutas estudantis, de um país onde a mordaça de um regime de governo nos calara a todos. Discutíamos como seria o futuro desta terra.

E ela ali, rondando e prestando toda a atenção possível. Louca pra fazer perguntas, mas de certa forma se contentando em ouvir.

Um salgadinho aqui, um copo de refrigerante ali, e ela em volta.

- Filha, está ficando tarde. Melhor você se despedir do pessoal e ir dormir. Dá um beijo nos tios e vamos.

- Não, mãe, só mais um pouquinho!

E foi ficando. Atenta. Ligadíssima. Os olhos refletindo seus pensamentos, como sempre.

Ouviu falar de gente amiga que sofreu, de músicas, livros e idéias censuradas, do quanto os direitos de todos foram desrespeitados.

- Filha, agora sem apelação. Hora de dormir. Dá boa noite pra todos e vamos.

- Mas a minha dinda ainda nem chegou! Deixa só eu esperar por ela! Por favor, mãe! Prometo que vou dormir assim que ela chegar.

Argumento incontestável. Esperar a dinda. Há quem resista? Apelos gerais pela permanência da pequena, e ela ficou. Feliz da vida, é claro.

Pouco depois chegava a madrinha. Quando soube que tinha servido de pretexto pra afilhada dormir mais tarde, não cabia em si de tanta corujice.

- Vem cá, senta aqui perto da dinda. Fica aqui comigo um pouquinho e depois a dinda põe você na cama.

Podem imaginar a euforia? Ela, que até então estivera na posição de mera criança enxerida, agora estava sentada ao lado da madrinha, no sofá, finalmente fazendo parte da roda.

Depois de algum tempo, a dinda, com uma pitada de tristeza no olhar, lembrava de um grande amigo nosso que foi suicidado.

Sim, naqueles tempos pessoas eram suicidadas. O que? Você não conhece o verbo "ser suicidado"? Que bom! Você já cresceu num país livre. Acredite, isso existiu.

- Filha, hora de dormir. Beijo na dinda, nos tios e cama!

Estranhei. Ela levantou, cumpriu todo o ritual e chamou a dinda para levá-la para a cama. Sem reclamações.

Já chegando perto da porta do corredor dos quartos, ela se vira, olhos com um brilho estranho, e fecha a noite:

- Melhor ir dormir mesmo. Não gosto de saber desses abesurdos (assim mesmo, sem "b" mudo!).

Tudo que eu consegui dizer foi:

- Boa noite, Maria.

 
 
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