MERGULHO NO ESCURO
Míriam Salles
 
 
Eles desligaram o telefone, ambos incomodados. Ela pensando que ele já não a amava, ele que aquela relação já não lhe bastava. Como em todo relacionamento amoroso, chegavam àquele ponto em que a rotina sufocava e a falta dela criava ansiedade. Quedaram-se ali, mudos, cada um com pensamentos tão semelhantes e no entanto tão distintos. A quilômetros de distãncia e ligados pelo fio do sentimento em comum.

Haviam comemorado o terceiro aniversário de relacionamento há poucos dias. Relacionamento? Amor? Como dar nome aquilo que acontecia entre eles? Se falavam quase diariamente por telefone ou pela internet, mas não se conheciam. Ah, sim, conheciam-se por dentro. Viravam-se do avesso um para o outro em palavras, mas não em gestos.

Ela às vezes se perguntava se teria a mesma coragem cara a cara, olho no olho. Nem sabia a cor dos olhos dele. Ele achava que ao vivo quebraria todo o encanto e por isso recusava-se a marcar um encontro real. E nisso se passaram mais de 3 anos.

Uma vez quase que se encontraram. Estava tudo marcado, combinado. Ela passaria pela cidade dele, telefonaria e se encontrariam. A ansiedade tomou conta dos dois, a mesma que agora cobrava uma proximidade. Ela cortou os cabelos, comprou roupa nova, arrumou-se para encontrar seu "principe". Ele roía as unhas desde cedo no trabalho, olhando o relógio a cada minuto. Chegou a hora, passou da hora e ela não ligou.

Depois contou a ele que havia ficado com medo de estragar tudo e desistira da viagem. Inventara uma gripe e pedira que alguém a substituísse. Simples assim. O medo é simples, a falta dele que é complicada.

Pensavam ambos, e nisso concordavam, que no momento em que se vissem todo o resto perderia a importância. Que poderiam viver de amor numa cabana. Que não haveria problemas de cheiro, de pele, que se amariam à primeira vista, como se amaram à primeira teclada. Mas no fundo, ambos também tinham medo disso. Medo de se encontrarem e não se reconhecerem como parceiros. Medo de não gostarem do cheiro um do outro. Medo de não sentirem a excitação que sentiam quando se falavam ao telefone. Medo também de sentir tudo isso e não saber como continuar vivendo separados depois. Eram ambos solteiros e desimpedidos. Cada um com sua vida organizada no trabalho, nos pequenos apartamentos que ocupavam, nos hábitos solitários.

Ela sonhava com uma casinha com jardim e flores. Talvez um cachorrinho - pequeno - no quintal e um gato no sofá da sala. Ele sonhava com uma cobertura moderna, com um equipamento de som da última geração fazendo conjunto com uma TV de 40" e um DVD. Eventualmente um pássaro daqueles coloridos, importados.

Mas naquele dia desligaram os telefones e cada um sentiu que era tempo de tomar uma atitude ou se perderiam.

Ela ligou novamente e, decidida, informou que pegaria o primeiro ônibus naquela sexta-feira. Ele, surpreso, só sabia dizer "ahã".

Ela saiu de casa com uma maleta, unhas sem fazer, cabelo recém lavado e molhado, vestida de jeans. Saiu como sempre saía: vestida de si mesma. Ele saiu pra esperá-la na rodoviária resolvido a terminar tudo.

Ela desceu do ônibus com o coração disparado.

Ele observou-a descer engolindo em seco.

Ela olhou e sorriu.

Ele derreteu.

Ela mergulhou de cabeça nos profundos olhos verdes.

Ele acolheu.

 
 
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