Página Principal
CONTOS COLETIVOS

Bárbara Helena
Flora Rodrigues
Kleber Carrilho
Luís Valise
Marco Aurélio Brasil Lima
Maurício Cintrão
Paffomiloff
Rodrigo Stulzer

DESPERTAR NA FLORESTA
um conto coletivo dos Anjos de Prata

 


Um dia, uma linda menininha saiu de casa com sua capota vermelha para entregar doces à vovó. Ela estava cheia desta história de ajudar a sua avó. Tinha mais coisas para fazer e nunca se dera bem com ela. Pra começar, a velha era diabética, e não tinha nada que ficar comendo aqueles doces de abóbora em forma de coração. Pensou em deixar a cestinha cheia de glicose na porta e sair correndo, mas sabia bem que a velha ia querer abraçá-la, beijá-la com aqueles beijos melecados e dizer que ela estava uma mocinha, tralalá, tralalá. A velha simplesmente não percebia que Chapeuzinho já tinha 32 anos e deixara de ser virgem há pelo menos 17.

Foi quando ela olhou pelo retrovisor e viu um céu sem nuvens. Imediatamente, lembrou de uma anja chamada Anna Christina, portentosa detentora de belos e misteriosos olhos verdes. "Seriam as anjas astronautas?", perguntou a si mesma. E riu, porque a questão era levar os doces à vovô de beijos melecados e lembrar de uma anja, a essa altura do campeonato, seria mudar o rumo da história. Assim, ajeitou-se no banco, engatou a terceira e pisou fundo.

Fora péssimo seu último encontro com a avó, quando a velha jogara-lhe na cara eventos da infância, quando fora encontrada na cama com um lobisomem nu. "Ele era um lobo" - argumentou inutilmente a menina - "lobos não costumam vestir nada", e reforçou: "já viu um lobo vestido?".

"Não" respondeu a avó, "mas também nunca vi um lobo trancando velhinhas indefesas no armário". A menina argumentaria, se não fosse criança na época, que a velhinha sabia usar muito bem a garrucha do avô que, por sinal, morrera em condições misteriosas.

Foi então que a adorável menina percebeu que seu carro estava sendo perseguido por um caminhão estilo Encurralado, que tentava colocá-la para fora da estrada. "Não devo sair do caminho", disse para si mesma.

Mas a verdade é que ela estava mesmo a ficar apertada. Então ela decidiu mostrar a esse camionista desastrado como uma delicada mocinha sabia conduzir. Pôs prego a fundo no pedal e decidiu que não ia mais se atrasar porque, melecados ou não, beijos eram beijos e a vovó bem podia lhe deixar de herança aquela casa ao lado da floresta. Afinal de contas, ela sempre fora muito mais educada do que a branquela da De Neve que passava as noites com aqueles sete... bom, era melhor não falar mal dos ausentes.

Então ela olhou de novo pelo retrovisor e viu que o lobo estava piscando pra ela, o desgraçado.

- Este cara não desiste mesmo!... Quer que eu perca toda a graninha que a vovó guarda debaixo do colchão? Esta história de lobo de estimação não vai colar duas vezes. A vovó é meio cega e surda mas não é burra e...

De tanto olhar pra trás não viu o carro que parou na sua frente e entrou com tudo na traseira dele.

Chapeuzinho foi voltando a si lentamente. A batida não fora assim tão violenta, mas dera com a cabeça ao volante e sofrera breve desmaio. Lembrou-se dos beijos melecados da avó. Abriu um pouquinho o olho esquerdo e viu um rapaz com o rosto muito próximo ao seu, fingindo que lhe aplicava respiração artificial, quando na verdade estava chupando-lhe gostosa e delicadamente os lábios. Pensou melhor, esqueceu-se da vovozinha (afinal não eram tão melecados assim) e deixou-se ficar, prolongando o desmaio fingido. Um galo começava a aparecer em sua testa, ou pelo menos o que ela achava que era um galo. Quando o rapaz afastou-se, Vermelhinha gemeu: "Mais...".

- Não preciso de mais - respondeu o rapaz - já foi o suficiente.

Vermelhinha sentou-se, meio irritada.

- Como?

- E não...

- Eu sei que você não necessita de mais, mas EU preciso de mais.

- Se soubesse o que eu estava fazendo, concordaria comigo.

- o que você estava fazendo?

- Colocando em você... - Vermelhinha ficou vermelha - ... uma maldição.

- Uma... maldição?

O rapaz sorriu, maliciosamente.

- Sim, consegui despistar o Lobo Solitário, que é o detetive contratado pela sua avó para protegê-la. Através do Beijo Satânico, insuflei-lhe o espírito de um demônio. Veja sua testa.

Olhando pelo espelho retrovisor quebrado, Vermelhinha percebeu que um chifre solitário brotava-lhe da testa. Por isso seu inconsciente havia invocado a imagem da anja Anna, era um alerta espiritual! Se ao menos não tivesse interpretado mal as intenções do Lobo solitário...

De repente, Vermelhinha ficou tonta. Sua pele foi ganhando tons avermelhados, sua respiração tornou-se gradativamente mais difícil. Olhou para o rapaz e pareceu que ele se espantava, mas não tinha certeza disso. Era muita tontura e uma sensação estranha de amplificação dos sentidos. Parecia ouvir mais, sentir perfumes desconhecidos e o paladar de sua própria saliva era diferente.

Buscou firmar-se apoiando na porta do carro, mas não conseguiu. Um grupo cantava uma música ininteligível, talvez algum cântico ritual, mas era difícil supor em meio àquela tontura. Deitou-se no banco e começou a chorar.

- Vovó, vovozinha, para que serve um chifre tão grande?, perguntou antes de desfalecer.

O som dos tambores entrou noite adentro. Risadas longínquas. E antes que tudo fosse escuridão completa para ela, sua mente dopada julgou ouvir um uivo ensandecido, de lobo, de homem, de lobo mau, muito ao longe.