DE AMOR E DE DÍVIDAS
Maurício Cintrão
 
 
Nos últimos tempos, é cada vez maior a quantidade de praticantes da insônia, o esporte da crise. Qualquer hora, pode até surgir competição oficial, com Federação própria, cartolas, venda dos direitos de transmissão e brigas nos tribunais.

Confesso que ficar sem dormir contra a vontade é uma atividade nada curiosa, desagradável mesmo. Mas virou mania. O que é que eu posso fazer? Não foi à toa que as emissoras convencionais de TV resolveram esticar a programação madrugada adentro.

Há quem arrisque dizer que a insônia é uma variação de esporte radical, porque depende de esforço pessoal, preparo físico e emocional. E exige adrenalina pura. Os praticantes ficam pendurados pelas cordas do cansaço nos penhascos das dívidas, às vezes do abandono, eventualmente da incerteza em relação ao futuro, balançando sem vontade.

Aderi involuntariamente à moda e acabei adquirindo certas habilidades até então ocultas como arremesso de ciúme a longa distância e lançamento de cheques potencialmente sem fundos para fora da conta. Ciúmes e cheques devem ter sido criados por aborígenes australianos. Voltam feito bumerangues.

Apesar da adesão, entretanto, não consigo acostumar com a idéia de estar devendo ou de estar perdendo. E não durmo. Vago fantasmagórico pela casa à meia luz. Olho a TV e jogo de sonhar acordado, em busca do prêmio do sono. Nem sono ou sonhos vêm em meu socorro. E a brincadeira é pesadelar a seco, de olhão bem aberto, entre pernilongos violinistas e lembranças amargas.

Um vizinho, mais esperto do que eu, resolveu dar um clima cult ao problema enchendo o apartamento de plantas. Religiosamente, rega as plantinhas durante a madrugada. É insônia ecológica, politicamente correta e produtiva. Se os pensamentos são maus, que se transformem em esterco a fertilizar o verde doméstico.

Observando o vizinho, tenho a certeza, pelo menos, de que meu problema não é individual, mas coletivo. Eu, o vizinho verde e outros milhares (ou milhões) de irmãos praticam a mesma modalidade. Todos com os mesmos problemas existenciais, com base na arritmia das relações mal paradas ou da solidão financeira.

Celebro silenciosamente com meus companheiros noturnos, quem sabe com os vizinhos continentais, a solidariedade vermelha e pálida do déficit pessoal. Não resolve o problema, mas torna o amanhecer menos doloroso. Apesar dos passarinhos que não têm dívidas ou dúvidas. Cantam a chegada da manhã como se tivessem ganhado na loteria ou reencontrado a certeza de amar.

 
 
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