DEPOIMENTO
Fernando Borba
 
 
"Quando fiquei na cela vizinha da Glória Trevi disse logo pra ela não cantar, que não gosto de voz de mulher cantando. Em vez de zangar ela riu, quis saber meu nome e o que eu tinha feito pra estar ali. Passei batido a primeira pergunta e contei a bobagem que tinha feito. Eu seqüestrei uma criança de um ano, tirei as vísceras e costurei ela com três quilos e cem de coca pura. Meu Deus, hijo, e você não teve pena? Fiz a bobagem de não pôr bastante formol, e por isso a Grace Lucy foi apanhada no avião. A aeromoça quando descobriu vomitou a Grace Lucy toda, que veio suja até aqui.

Ela resistiu a quase todo o interrogatório, só falou quando lhe enfiaram um varão de cinco oitavos atrás e esquentaram a outra ponta. Foram me pegar naquela madrugada mesmo no barraco de mãe Tarsila. Eu estava dormindo quando dezenove homens derrubaram a parede do barraco e cairam em cima de mim. Mãe Tarsila morreu pisoteada na confusão e este braço aqui foi quebrado, olha - e torci ele pra Glória ver, ela escondeu o rosto com as mãos, pelamor de Deus, não faz isso, seu coisa. Quando foi no outro dia ela perguntou se eu tinha filho, família, tudo isso que mulher gosta de perguntar. Filho nunca tive, mas tenho família, todo mundo tem família, só que meu pai foi embora cedo. Eu saí de casa ainda moleque, quando o cara que dormia com a minha mãe inventou de me montar, eu não deixei e ele começou a me encher de porrada, mas fica fria que já apaguei ele faz tempo. A Glória perguntou se eu achava ela bonita, assim vestida não dá pra saber, mulher, e as celas são de grades e tem sempre gente passando por aqui. Ela perguntou o que eu fazia quando demorava um tempo sem mulher, eu faço o que todo homem faz, ora. No outro dia ela disse que tinha arranjado uma caneta bic, dá pra você encher a caneta de noite, quando for se aliviar, e passar ela pra mim? Aí, de madrugada, eu acordei com um calor, lembrei o pedido da Glória Trevi e fiquei pensando se devia mesmo fazer o que ela queria, e naquela parada toda que ela estava vivendo. Então eu aproveitei que não tinha olheiro nenhum por perto, me cheguei junto da grade e passei a caneta cheia pra ela, e ainda perguntei se não era melhor fazer a coisa normal. Ela tinha estado cochilando encostada na grade e ficou olhando muito tempo pra mim e então eu prestei atenção nos olhos dela, pô, ela tem olhos de garota sofrida, nunca tinha visto olho de mulher tão triste daquele jeito. Tem muita conversa fiada por aí, tem muita mentira, um diz uma coisa outro diz outra. Já faz uns meses que essa parada aconteceu, e quando nascer o moleque eu vou assumir ele, eu tenho direito, faço DNA e tudo, quero criar ele como um bom pai, junto com a mãe dele, ela vai morar comigo, ela tem de conseguir o asilo no Brasil e ninguém vai nos enrolar."

 
 
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