NÃO FALE COM ESTRANHOS
Helena Atropos
 
 
A sensação de que viver vale tão pouco. E um asco querendo me fazer vomitar.

Poderia ter seguido em frente, mas fez uma curva brusca, cônscio da impossibilidade de frear. Derrapou no asfalto quente, e por pouco não perdeu o equilíbrio, caindo com motocicleta e bagagem no chão. "Que reflexo", eu pensei.

Ele, ainda assustado, diminuiu a velocidade e lascou o grito:

- Tá doida?

Eu não tive pudor:

- Quem tá doido é você, seu idiota.

Ele fez um gesto com um dos braços, como se dissesse: "Que é isso... assuma que você errou..."

Ora, eu sabia que tinha errado. Atravessei a dez metros da faixa de pedestres, com o sinal aberto para os carros, sem olhar para nenhum dos lados. E ainda por cima estava com o uniforme da Secretaria de Trânsito, onde trabalho. Não deixei por menos e com as duas mãos, fiz um gesto agressivo, pouco educado, que o deixou tão absorto a ponto de parar a motocicleta. Pensando bem, talvez ele não tenha parado porque estava absorto, mas por vontade de revidar a violência. Eu não me importava: continuei andando e passei por ele, indiferente.

- Ô garota, você não viu que o sinal estava aberto? Cuidado... você pode acabar com sua vida!

Meus olhos o metralharam:

- Jura que você sabia disso o tempo todo? E ainda assim não passou por cima de mim? Definitivamente, você é um idiota.

Quando eu me virei e pretendia ir embora, preparando uma cara de dor-de-barriga para justificar meu atraso na repartição, ele desceu da motocicleta, segurou meu braço direito e disse qualquer coisa que eu não compreendi muito bem. Quando tornei a encará-lo, ambos nos assustamos: eu, com o tamanho do seu nariz, que não cabia dentro do capacete vermelho, e ele, com a minha cara de dor-de-barriga.

- Você está dizendo que quer morrer? Não tem vergonha de querer fazer isso com você? Uma garota tão nova, tão...

- Me largue, seu estúpido, eu estou atrasada.

- Atrasada? Atrasada para o quê? Para morrer? Eu não posso deixar você ir embora assim, e se você se jogar na frente de outro motociclista menos hábil?

A falta de modéstia e o complexo de super-herói fez torrar o meu fígado:

- Pode deixar, da próxima vez tento um ônibus.

O sol àquela hora não era muito propício para um diálogo producente. Não sei foi o temor da populaça, que já nos sondava, ou a impressão de que não adiantava argumentar: ele soltou meu braço sem dizer mais nada.

Continuei andando sem vontade em direção ao empreguinho chato, pensando em pudins de leite condensado. Atravessei duas quadras e comecei a assobiar aquela ária de "Carmen", a Habanera, "L'amour est un oiseau rebelle, lá, lá lá", quando a mesma voz grave me interpela:

- Ei, gosto do compositor dessa ária!

Ele me seguiu. E conhecia Bizet. Pior de tudo, feria meu drama, pois o que pode se pensar de uma suicida que minutos depois de se jogar em frente a uma motocileta, assobia Bizet?

- Olha se você não sumir da minha frente eu vou gritar e procurar um policial.

- Calma! Eu só queria conversar, saber se você está bem. No fundo, eu queria saber o porquê de alguém jovem, bonita (ele me olhou estranho) e aparentemente normal, querer tirar a própria vida...

Eu olhei o prédio da Secretaria de Trânsito mais adiante, e desconsolada, resolvi me sentar num banquinho que providencialmente se encostava no troco de uma árvore, ali no canteiro principal da avenida. Ele entendeu meu desânimo como um assentimento para aproximar-se, e devido a eu não ter forças nem mesmo para sustentar uma cara de dor-de-barriga, deixei que ele sentasse ao meu lado e começasse a falar.

Ele falou da beleza da vida com todos os chavões que um indivíduo médio poderia conhecer em cento e cinqüenta anos de vida. Seu discurso dava quase um artigo da "Seleções Reader´s Digest". Em certo momento, me surpreendi com seus olhos enchendo de lágrimas, tamanha comoção lhe causou a frase de cartão natalino que acabara de pronunciar.

- Besteira - falei sorrindo, com frieza ártica.

E como o ser humano nada faz sem uma autojustificativa, mentira ou tapeação, comecei a falar-lhe do jovem Weather, personagem de Goethe, que era um suicida convicto e defendia que todos tinham direito de tirar sua própria vida, pois isso era uma consequência natural de uma doença emocional, tão palpável como uma febre física, tão fatal como uma tuberculose. Portanto dizer a um suicida que ele tratasse de esquecer suas dores, e que pensasse nas coisas boas da vida, era como tentar convencer alguém a não morrer de varíola, fazendo-o esquecer suas dores e olhar para as coisas boas da vida. Para Weather, eu explicava, o suicídio também era uma forma de morte natural, inevitável para um ser que foi tão ferido emocionalmente a ponto do seu espírito cansado não sustentar mais a matéria.

A princípio eu falava quase sem vigor. Mas quando percebi que ele me olhava atentamente, e reagia com espanto e interesse a cada frase que eu construía, me animei, e passei a reforçar meus argumentos. Em seu rosto se estampava a expressão de quem vê o próprio mundo caindo e dando lugar a uma paisagem mórbida, que insiste em aparecer como o único retalho de verdade. Eu continuava, impiedosa, formulando ainda outras teses que confirmassem meu tresloucado ato. Já não tinha nenhum interesse pela morte, nem pensava mais em cordas, gás ou pneus de trator. Naquele momento estava toda embebida em convencê-lo. E para isso não poupava deduções forçadas, sofismas capciosos, definições muito amplas, estratagemas sutis, e uma oratória trabalhada para ceifar sua resistência até a raiz.

Quando terminei, já era noite, e ele não havia mais proferido uma interjeição. Agora, algo mais me assustava além de seu nariz medonho, todo saltado, livre do capacete. Era seu olhar vencido, meio insano, de afogado que sabe que não vai voltar à tona.

Escrevi meu endereço eletrônico num papel amassado e lhe entreguei. Me despedi sem muita cerimônia e depois de dados alguns passos, parei, olhei para trás, e vendo que ele ainda estava sentado na mesma posição, pedi desculpas e fui embora. Até agora não sei bem a razão de ter pedido desculpas. Mas sei que elas tiveram sua utilidade.

Duas semanas depois, saindo da repartição na hora do almoço, eu parei na banca de jornais e pedi o fascículo mais novo daquele curso de desenho. Passando os olhos pelas manchetes, me chamou atenção a foto de uma moto vermelha caída ao lado de um corpo mutilado. Na cabeça, o capacete preso, deixava ver um nariz desproporcional.

Peguei meu fascículo, esperei o troco, e voltei para a repartição, procurando um computador. Acessei minha conta de e-mails. Cento e doze mensagens não lidas, mais de um mês sem ser aberta. A mais recente não tinha título, e no corpo do e-mail uma única frase: "vc tinha razão".

Falei com a chefe, pedi para ir embora "por causa daquele problema...", e ela me receitou um ótimo chá para o intestino. Desci as escadas sentindo a língua amargar, e alcancei a saída, feliz por não cruzar com ninguém. Parei um instante para lembrar o caminho de casa. E atravessei a rua, olhando bem para os dois lados.

 
 
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