BAILE DE MÁSCARAS
Jorge Gomes Silva
 
A Vaidade desceu magnífica a escadaria para o salão. Resplandecia, confiante, exfusiante de alegria pela reacção da plateia improvisada. Ufana, profana, elevou-se na aparência o que certamente caíria se devassada nas virtudes, um vazio, e na leviandade da sua conduta mal justificada com inepta hipocrisia. Uma santa, na sua boca. E nas dos presentes, até virarem costas à anfitriã ocasional e transferirem para outro palco as suas celebrações. Casacas cortadas, pedaços rasgados de uma reputação que arrastava na queda as vidas dos que as viviam em função do falatório. A Vaidade tinha telhados de vidro nessa matéria.

As outras, também. Mas comiam pela calada, mais sonsas, encobriam. A Inveja disfarçava em elogios o rancor que sentia pela vedeta de circunstância, guardava para mais tarde o prazer mesquinho de emporcalhar a existência da princesinha. Já a Ganância não via modos de deitar a mão ao companheiro da dona da casa, o Dinheiro, que a sustentava e lhe conferia estatuto bastante para conviver com a nata, com os melhores. Ambas odiavam a outra, conspiravam, fomentavam reciprocamente o despeito.

Vaidade sabia, mas fingia como era de bom tom, suportava-lhes a presença para as presentear com a tortura de se confrontarem com a imponência do seu dourado pedestal. Sorria-lhes, acolhedora, e elas retorquiam com um aceno, encenavam a amizade possível no seu pequeno círculo infestado de tubarões.

A seguir retomavam, antenas em alerta máximo, a captação de indícios seguros, ou não, de outras vaidades efémeras, de outras almas ímpias e pobres, infiltradas por engano na elite dos ganhadores. Presas vulneráveis, patéticas, sinceras. Que confiavam em surdina os segredos que se espalhariam nesse mesmo dia por quantos ouvidos se conseguissem alcançar, como uma peste. Essas penetras, fraquinhas, afastavam-se sem luta, tinham vergonha na cara e desapareciam da alta roda para nunca mais darem conta de si.

Contudo, também os havia renitentes, os que agarravam com as unhas e com os dentes a vaga que para si reservavam, o seu lugar ao sol. Cada um com a sua motivação. O Orgulho, por exemplo, sabia-se falido mas escondia nas mais fundas masmorras essa verdade cruel, assim julgava. Mas sempre transpiravam uns rumores pelos poros ímpios daquelas línguas viperinas, pequenas partículas de boato que se concentravam como neblina em redor do visado. E depois desatava a chover sobre os impérios de fachada, castelos de areia que se dissolviam com os donos numa torrente de lágrimas sempre que o sonho chegava ao fim.

Poucos se ralavam, antes pelo contrário, com a desdita dos iguais. A Piedade há muito deixara o convívio daquela faixa social, como outras, palermas, armadas em boas num vespeiro letal.

A Fortuna, cunhada da anfitriã, só bafejava alguns e pouco primava pela estabilidade dos seus humores. Dava e tirava, fazia e desfazia, ao sabor da corrente em que embarcava, das modas e conjunturas. Instável e precariamente fiel. Porém, todos a adoravam, poderosa mas discreta, alardeava a riqueza somente nos instantes em que a partilhava e assim recrutava novos adeptos para a causa motivada pela vontade de enriquecer. Uma corte de fiéis, em constante renovação. Jet set, chamam-lhe por aí.

O quarteto de cordas anunciou o momento mais alto da ocasião, fotógrafos em barda, cronistas em profusão. Uma união de famílias, como se previa, a junção de outra jovem Fortuna com um membro destacado do clã residente na Quinta do Poder. Um casamento de conveniência, aliança forçada, forjada, para fortalecer posições e perpetuar a excelência de uma existência superior à disponível para milhões que os seus ajudariam a melhorar, se desviados para outros fins.

À cerimónia anunciada, com a presença da televisão, não faltariam sequer os mais ilustres representantes da economia mundial, sedentos de pretextos para afinarem mais um pouco os diapasões da sua estratégia global. Convidariam também, a bem da saúde do Mercado e da sua imagem de seriedade, algumas figuras de proa, assalariados, para conferirem ao evento a dignidade indispensável, para mutuamente se legitimarem no esquema eterno de entrada restrita no clube privado, abastado, dos que se reconhecem entre si através das máscaras que lhes disfarçam nos rostos o desdém pelos que ficam de fora.

A ilusão, qual adereço de cinderela, desvanece-se em fumo quando se esgota a finalidade, o único elo de ligação entre esses personagens irreais de um paraíso de fantasia. Se o Dinheiro morre um dia, de enfarte nas acções, certamente tombará com estrépito.

Dona Miséria, encarregada da limpeza, cuidará de reunir de novo, com paciência infinita, os pedaços estilhaçados de muitos sapatinhos de cristal. Os contos de fadas de outras Ambições encontrarão assim o seu pessoal e intransmissível cartão de acesso a um final que todos imaginamos feliz.

E o baile recomeçará.

 
 
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