SURURU DE CAPOTE
Luís Valise
 
 

Pisava na própria sombra de mulher equilibrando uma lata na cabeça. Como todos os dias, sob o sol de meio-dia, Merê caminhava resignada os quilômetros que separavam sua casa da cacimba de água terrosa. A sola grossa dos pés descalços esmagava indiferente a terra em brasa. Com a água e algum tempero preparava o feijão cotidiano. Jê e Gé sempre chegavam em casa com fome, e naquele dia não seria diferente. Jê chegaria suado, tiraria a farda de polícia e sentaria à mesa, o revólver preto ao alcance. Um pouco depois Gé apareceria como sempre, correndo, cadernos atirados num canto, cabelos caídos na testa, conversa jogada fora até que o feijão com arroz fossem servidos. Logo chegava a noite trazendo algum frescor, e as redes estendidas esticavam suas veias sob o peso dos corpos de muitas léguas.

Maria Merenciana, cabocla de seus vinte e poucos anos, cuidava como podia dos poucos teréns: alguns vestidos de chita, algumas mudas de roupa do filho Genésio e da farda do marido Jesuíno. A casa de chão batido, uma ou outra galinha no cercado, a moringa abastecida da água terrosa. Vez ou outra o Jê chegava mais cedo e se punha a azeitar a arma: pegava um pano velho, o óleo Singer, e um arame comprido com um pano enrolado na ponta. Tirava a poeira acumulada com o pano e assoprões. Cutucava o fundo do cano com o arame. Deitava gotas do óleo nas partes móveis. Então chamava Merê pra perto. Fazia com que ela segurasse a arma, a coronha bojuda enchendo sua palma da mão, seus dedos deslizando sobre o cano liso, enquanto sua própria mão subia-lhe pelas pernas. O cheiro adocicado do óleo penetrava as narinas de Merê, a mão de Jê lubrificava seu sexo, e Jê podia sentir-lhe o perfume adocicado. Antes que o filho chegasse os dois se achegavam da rede, que se punha a balançar no ritmo do mundo.

Lugarejo de algumas centenas de habitantes, muitos aparentados entre si, a cadeia existia mais por hábito que por necessidade. Jesuíno cuidava dela, auxiliado por Claudiomiro, que também andava fardado porém sem arma, e era casado com Lucinalva, morena sorridente, prestativa, disposta. Não tinham filhos. Quando se juntavam em festas Merê ficava assim ressabiada com o sorriso farto da Cicinha pra todos, também pro seu Jê, que mesmo no meio da conversa com Claudiomiro sorria de volta. Naquele sorriso tinha coisa.

Em março daquele ano o prefeito teve que ir à Capital, tratar das coisas da política. Chamou Jesuíno pra fazer-lhe a segurança. Precisão não tinha, mas e a vaidade? Jesuíno chamou Claudiomiro, que trouxe Cicinha. Depois de um cálice de pinga tomado em ocasiões especiais, levou o assistente pro terreiro e lá ficaram um tempo na conversa. Cicinha, sorrindo, brincava de sub-delegada, e entristecia Merê com seus olhos alegres. No fim, Jê fez questão de acompanhar os dois de volta pra casa. Quando Jê voltou e deitou na rede Merê desceu pro chão. Alegou dor nas costas e passou a noite em claro, o sorriso de Cicinha alumiando sua insônia.

Sem o Jê em casa a precisão de água diminuiu e Merê não precisou andar até a cacimba todos os dias. Ficando em casa, teve tempo pra pensar besteira. Até o Gé percebia e perguntava: - mãínha tá aperreada, é? Saudade de paínho? Merê passava a mão na cabeça do filho e mandava ele ir brincar lá fora.

Passada uma semana a "comitiva" voltou. Jê chegou e foi logo tirando a roupa de passeio, os sapatos do casamento e se refrescando com um punhado d'água nos sovacos e no pescoço. Vestiu a farda limpa e avisou Merê: - vou pegar relatório com Claudiomiro, capaiz de carecê de chegar mais tarde. Saiu apalpando o revólver no coldre. Logo o azul do dia deu lugar à incertidão do cinza. Merê fez o prato de Genésio e ficou sem comer. Pela janela só o que via era a festa dos vagalumes no cio. Fez-se uma noite sem lua. Merê tomou a decisão.

A lanterna jogava uma roda de luz no caminho conhecido. Uma quadra antes da cadeia Merê parou. Deserto. Sufocou o galope do coração e foi-se aproximando até ter certeza: - ninguém lá dentro. Tomou o caminho da casa de Claudiomiro. Abriu a cerca de bambu e entrou. Por pouco não pisou no cão mirrado que dormia enrolado perto da porta. Sem tranca. Escuro. Silêncio. Coração de zabumba. O foco de luz passou por uma Santa Ceia desbotada na parede de barro. A mesa, as cadeiras, um paletó de farda pendurado, um cinturão com um revólver preto. Pegou a arma, a coronha roliça, o cheiro de óleo. Andou em direção ao quarto. O facho de luz bateu no ventre inchado da rede. Dois corpos abraçados e adormecidos. Jê não devia fazer isso com ela. Sentia o peso da arma carregada no braço esticado. A roda de luz clareou as costas que levariam a primeira bala. Um segundo antes de apertar o gatilho, ouviu uma voz falando baixinho: - pense no Gé. Deu um giro e encontrou o rosto sério de Cicinha. Voltou a luz para a rede, iluminou os rostos, e viu Jê respirando junto à nuca de Claudiomiro. Cicinha segurou-a na vertigem, e levou-a de volta à cozinha. Não sorria. Repetiu: - pense no Gé. Merê pensou durante alguns minutos. Quais as palavras? Recolocou o revólver no coldre.

Fez o caminho de volta sem acender a lanterna, naquela noite de sertão sem estrelas e sem luar, muda e morta, como seu coração.

 
 
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