DESTINO FURTADO III
Paffomiloff
 
 
A relação do humano com aquilo que não tem é a mola mestra dos prodígios, mas também é a pá que rasga abismos, cujo fundo está inacessível até ao medo, este viajante veloz.

Isto pensei quando vi as imensas redes translúcidas, que jogavam-se para para os céus, colhendo a água flutuante das nuvens, que congelava em crostas, por dez minutos exatos, ao fim dos quais, uma miríade de cata-ventos entrava em ação. Seus rotores conferiam tamanho calor à trama, que a água deslizava morna, correndo em cascatas pelo vale, que explodia em verde, cor que só aparecia nesta montanha aos viajantes que se lembrassem de levá-la consigo.

Neste lugar banhei-me com Rex, o último cão que me sobrara, e cujo nome nascera da crueldade semântica chamar de rei, a quem se trata como escravo. Usufruímos daquele momento de harmonia, sabendo que éramos os dois últimos, e que um de nós morreria. O leitor deve saber qual, pois se eu tiver morrido, esta história não estará sendo lida.

Vesti-me rapidamente, ao avistar a chegada de um homem, provavelmente um morador local, pois não tinha roupas de jornada. Cumprimentou-me com um esbaforido:

- Você não deveria estar aqui! - e depois acrescentou - eu também não deveria. Estou por sua causa, mas não precisa se desculpar, venha comigo à vila parabólica, onde poderá comer.

Rex pareceu entender, pois olhou para mim. Retribuí o olhar. Estávamos salvos como dupla, por um período indeterminado.

Seguimos o esbaforido vilão como se fossemos âncoras. As cachoeiras de dez minutos eram muitas, e deviam estar em atividade há séculos, pois, no lugar de pedras estéreis e esquálidos líquenes, havia terra de verdade, húmus e polpuda vegetação, onde carneiros caminhavam, leves como nuvens baixas.

Ele só relaxou um pouco quando disse que já voltara para o lugar onde deveria estar, desde que nos avistara. Apontou para uma das cachoeiras e disse:

- Ali foi capturada uma liteira. Você deve ter vindo em outra, mas não a vejo pousada por perto - o que era óbvio, pois não queria sobrecarregar meu único cão, por isso viera andando, aos trancos e barrancos. Sem ter como amarrá-lo, meu veículo também foi levado pelo vento - Devo esclarecer que capturar não é um ato de guerra, mas uma eventualidade de manutenção.

Perguntei-lhe se havia alguém na liteira. "Sim, uma mulher bonita", aliviei-me de estar na presença de alguém que fala de uma qualidade antes de mencionar um defeito, pois, sendo este o epílogo, a mulher só podia ser a minha engenheira Bórgia.

- Ela está bem. Parecia congelada, mas estava numa espécie de sono mágico, do qual despertou, pedindo ajuda. Nós a alimentamos, agasalhamos, e esta noite será morta. É seu destino.

Um bom narrador não emite juízos de valores e nem se choca, já que o estranhamento é um juízo, mas não pude me furtar a negociar a relatividade do conceito de destino, ao que me respondeu:

- Antes de discutir comigo, olhe a vila - disse, como se precisasse me lembrar de meus atributos de narrador - O que vê?

O verde vale descia suavemente, e dividia-se em dois com precisão geométrica. Tudo que havia à direita, havia à esquerda, como se um gigantesco espelho dividisse o cenário. À esquerda, as pessoas pareciam normais, executando suas tarefas de forma tranqüila, como se nada as pudesse surpreender.

Do lado oposto, contudo, pude perceber que as pessoas e animais, embora parecessem fazer as mesmas coisas, executavam tudo ao contrário. Andavam de costas, mastigavam pedaços de pão fresco para fora da boca, e até as águas das lavagens, ao contrário de se verterem para os bueiros, corriam destes para os baldes.

- O que você está vendo não são duas vilas, mas a mesma - ele procurou palavras para explicar - Na esquerda, onde moro, o tempo anda do início para o fim, como ocorre para você, e por isso podemos conversar. Na direita, contudo, o tempo corre para trás. Ocorre uma interação entre ambas, limitada por cartas trocadas por um conselho de sábios, para evitar que o determinismo oprima as pessoas. Não vemos o rosto deles, e eles não vêem os nossos.

Ele era, sem dúvidas, um dos sábios. Por isso não se apresentou como tal. Mas ele não viu uma coisa na vila invertida, que minha visão privilegiada de narrador me revelou.

Assim continuou a dissertação:

- Nesta interação trocamos história por profecias. Desta forma, soubemos que a engenheira serve a pessoas que planejam destruir os pontos altos das montanhas. Também fomos informados que o destino dela é morrer hoje, às seis horas e três minutos. Vou levá-lo a ela, para que se despeça, embora as profecias não falem de você.

Como poderiam? Meu destino de morrer no primeiro capítulo foi roubado por um garoto! Deixei que o sábio me conduzisse à vila do tempo normal, onde pedi um pedaço de carne. Rex olhou-o, faminto, mas não avançou. Era contra as regras da matilha comer antes de mim.

Seguimos por uma viela lateral, longe de olhares competentes para identificar um homem sem destino.

- Se alguém o vir, as pessoas do futuro saberão - dizia o sábio - mandarei que evacuem a rua, e fechem as janelas. Apenas o carrasco, que se oculta numa casa atrás da praça, para que os vivos não o conheçam, permanecerá a postos.

Aguardei com a paciência dos planejadores, afagando Rex, que olhava para a carne que eu tinha entre os dedos, incólume.

Quando fui chamado, a rua estava deserta, a não ser pelo sábio, que olhava para uma janela entreaberta a uns vinte metros, e a minha engenheira, sentada no chão, perto de uma fonte banhada pelos raios do perturbador ocaso. Ela sentiu minha presença, e veio a mim.

- Sabia que me encontraria - disse-me - por isso não desesperei. Esta gente é boa, estive ensinando às crianças. Sinto que esta vila... bem... tenho de obedecer ordens. Não emito juízos de valores sobre os interesses da Ordem a que pertenço. Sou como você, Narrador. Vamos, diga-me o que vê!

Na rua silenciosa, os raios de sol ainda tinham vida apenas para iluminar o relógio da torre, que prometia para segundos o momento fatal. Narrador via a morte afiada, faminta pelo coração da engenheira. Logo dela, que iluminava a vila com sua beleza, cada vez mais assustada, à medida que sua consciência se expandia pelas palavras ouvidas.

O narrador se afastou, mordeu a carne que trazia entre os dedos, e a jogou para cima, na direção da engenheira. Rex despertou, como uma flecha, e pulou para a comida, sendo acertado em cheio pela seta da balestra, na hora aprazada.

Uma balestra bem calibrada tem o impacto mínimo de uma pistola de trinta e oito milímetros, mas o musculoso cachorro desviou a ponta da flecha. A engenheira foi ao chão, ilesa, com o corpo de Rex nas costas. O sábio perdeu o fôlego, enquanto murmurava:

- Ela também teve seu destino furtado. O que faremos. Não posso permitir que ela destrua nossa vila.

Depois de ajudar a Engenheira a levantar, e tomar o cão em seus braços, Narrador informou que a ferrovia demoraria ainda dois anos para chegar, mas que não iria alcançar a vila, pois o tempo estava a ponto de fazer a curva, ou seja, a vila do tempo normal iria se transformar na vila do tempo invertido.

- Mas como pode ser isso? - Espantou-se o sábio

Narrador revelou que, quando estava nas montanhas, sua visão privilegiada mostrara o sábio fazendo sinal, espetando dois dedos para cima, querendo dizer que, em duas semanas, o tempo inverteria.

- Sendo assim, vou-lhes fornecer montarias para deixar a vila, e também provisões. - suspirou o sábio, aliviado por não ter sangue nas mãos - Sinto muito pelo seu cão.

Há milênios os cães pedem uma coisa aos homens, com seus olhos, mas não podem falar, por isso não são compreendidos. Tal pedido insistente também os homens fazem às religiões, instituições e famílias. Algo tão fácil de falar, quanto difícil de atender: "Por favor" eles rogam "dê atenção à minha vida, e um sentido à minha morte".

O cão deveria ser comido, conforme os ditames da matilha, para que algo do seu ser chegasse ao fim da jornada.

O sábio, fazendo jus à função, incorporou o ensinamento à sua vida, e conduziu-os à saída do vale. Foram em silêncio, até que a engenheira perguntou por uma caverna.

- Para que vocês querem entrar na caverna? - quis saber o sábio.

- Fora deste vale erodido por milênios de cachoeiras mornas, as pedras não aceitam pés humanos ou unhas de cavalos. Você não sabia, pois nunca saiu daqui. O caminho mais fácil é pelo sistema de cavernas que se encontra abaixo de nós.

- Como sabe disso?

Ela jogou uma pedra para cima, em seguida a aparou no ar.

- O tempo de subida e queda da pedra indica um decréscimo na aceleração gravitacional, nesta área, em relação à região do templo dos Piratas de Destinos, embora a densidade do ar indique a mesma altitude. Isso significa que sua montanha não é sólida, mas minada de caminhos - ela aspirou o ar profundamente - posso sentir a sílica salgada que vem do mar. Vem de nossa frente. Com certeza haverá um caminho que nos sirva.

- Não sei muitas coisas, por isso não me considero sábio de verdade.

Ele não percebia que o volume do conhecimento não era importante, se comparado à forma como o usava. Despediu-se de nós, e voltou para a vila, ansioso por se transformar-se de historiador em profeta, embora soubesse que a inversão do tempo eliminaria a distinção entre os dois papéis.

Assei o cachorro, e o comi regado a lágrimas. Já sabia, e havia avisado ao leitor de que Rex iria morrer, mas mesmo assim, não pude evitar de sofrer.

Senti a engenheira aconchegando-se, e dizendo:

- Senti falta de suas poesias.

O Narrador fazia poemas apenas naquelas noites, nas quais ela estaria dormindo. Desta forma ela confessou que estava consciente quando fizeram amor.

- Serei seus olhos, na escuridão das cavernas.

Essas palavras diziam que aquilo que os unia não era apenas o trabalho, pois ficaria com o narrador mesmo que não tivesse o que dizer.

- Esta noite me deitarei, e sonharei, ao invés de dormir.

Com isso, ela asseverou que aqueles, cujos destinos são furtados, recebem o direito de esculpir o amanhã.

 
 
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