OS OMBROS QUE SUPORTAM O MUNDO
Flávia Cintra
 
 

Naquela tarde eu saí da Lafontaine-Dauphin Opticiens com os meus novos óculos de grau. Aproveitei e também comprei um de sol, para estrear na viagem do fim de semana à Riviera. Carregava, além dos pares de óculos, alguns livros que havia comprado para ler no avião. A viagem para o Brasil era muito cansativa e um bom livro (combinado a uma exata dose de calmante) sempre me distraía do meu quase exagerado pânico de voar.

Eu estava perto do Jardin du Luxembourg e quis ver as cores.

O tempo estava úmido, mas não chovia. O sol não aparecia há quatro dias. Eu me sentia sufocada por aquela claridade incompleta. Ainda bem que em Nice o sol brilhava, me esperando.

De uma cabine, liguei em casa. Ninguém atendeu. Voltei ao meu propósito: precisava ver as cores. E pensava no mar.

Olhei as horas e fiz planos de também ir ao Pantheón, mas calculei que já não daria tempo. Passava das 17h e, àquela época do ano, ele ficava aberto somente até as 16h. Mas não me esqueceria de visitar o túmulo de Jean Moulin quando voltasse do Brasil.

Eu sempre andava pelas ruas observando atentamente as pessoas que passavam por mim. Tentava adivinhar de onde vinham, o que faziam ali e examinava, curiosa, a expressão de seus olhos.

Naquele dia eu não fizera isto. Inexplicavelmente. Talvez por isso eu não vi aquele olhar incrédulo pelo qual passei um pouco antes de alcançar o meu itinerário. Eu só pude sentir que, por instinto, passei a andar mais depressa. As ruas não estavam cheias e eu ouvi alguém que vinha atrás de mim, caminhando em alegretto. Passou-me pelo lado direito e lembro que vi ser o dono daquele apressado passo um homem de meia-idade, calvo e muito bem vestido: típico francês.

Sem que eu soubesse, aqueles assustados olhos de instantes antes me acompanharam. Vieram comigo pela Rue de Rennes, pelo Boulevard Raspail, pela Rue de Fleures e chegamos juntos ao Jardin du Luxembourg. E eu nem percebi.

Ah, e as cores?! O ar, as flores, aquele verde todo! Até o sol pareceu querer sair naquele fim de tarde como que para me agradar. Minha última tarde em Paris até a volta do Brasil.

Eu olhava para o Palais du Luxembourg. Meu rosto estava voltado para a direção do Seine. E eu pensava em cancelar a viagem só pelo motivo da visita ao Pantheón (simples desculpa) e nunca mais sair de Paris, e nunca mais na vida abandonar Paris.

Alguém tocou meu ombro esquerdo. Virei-me rapidamente, assustada e indignada por terem me tirado do transe em que eu me encontrava.

Por alguns instantes vasculhei minha memória atrás daquele rosto que me sorria. E então senti o peso dos dez anos que nos separavam sobre os meus ombros. Todos os acontecimentos de uma época despencaram sobre o meu corpo franzino.

Caí desmaiada. Nunca mais me levantei.

 
 
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