FÁBULA
Samuel Silva
 
 
Era uma vez um homem que se achava santo... Mas um santo diferente, um santo que achava incorporar em si todos os Santos e não teria, assim, pecado algum, nem vício ou tendência viciosa... Não lhe apetecia a vaidade, nem a cobiça, nem a inveja, nem o orgulho, nem a luxúria, nem a ira, nem a preguiça, ou a gula.

Era um homem feio e se sabia assim, donde não possuía vaidade alguma e ainda buscava realçar sua feiúra por todos subterfúgios que conhecia...

Era um homem sem cobiça, porque se sabia sem os talentos para obter-se coisa alguma e esse sentido de realidade extraía dele a natural e humana propensão a cobiçar, ainda que fosse a mulher do próximo ou mesmo o homem da outra.

Por saber-se feio e sem talentos ou alguma característica qualquer que o distinguisse da mediocridade, não invejava pois se inveja houvesse em seu coração, invejaria tudo de todos e qualquer um e ainda tinha algo que nenhum outro ser, animal, vegetal, mineral ou mesmo daqueles microbiais possuía, que era essa qualidade de ser nulo. Ora, um homem qualquer tem ao menos uma qualidade invejável, mas este não, a sua única caracteríscica era não ter nenhuma...Era uma contradição, mas era verdade.

De tanto não ter estes pecados, por certo não tinha ira, nem mesmo raiva, porque seria tanta raiva, tanta ira que ele, por sua falta de talentos, não teria como sentir.

Não tinha preguiça nem gula, a falta daquela pela total falta desta e qualquer coisa lhe servia e era bastante e para ter coisa qualquer não se exigia esforço, trabalho ou dedicação.

Por saber-se feio, sem talento e com a única qualidade de não possuir qualquer qualidade, sequer se julgava orgulhoso, porque isso exigiria uma qualidade que não possuia, a de valorar qualidades e identificar uma que sobressaísse em relação às qualidades de outros. Um homem pode cometer o pecado do orgulho quando se acha mais que outros, mas nunca se se sabe menos que qualquer outro!

Não pecou por luxúria, porque o simples desejar lhe era penoso, pois não lhe apetecia corpo algum, fosse de homem ou mulher, fosse feio ou belo, fosse real ou imaginário, porque sabia que era o que era e isso era ser aborto de qualquer desejo e se a luxúria é o desejo desenfreado, sem peias, o desejo exponencial, sabia que qualquer potência de base zero era zero. Apenas por poucas vezes, a bem da verdade uma ou duas, fez o que se faz quando se tem desejo e o fez sem qualquer gosto ou vontade, mas apenas para provar a si próprio o que sabia que era. Talvez por celestial ironia, lhe imputaram, mais do que ter feito, os efeitos do que fez e lhe disseram que tinha filhas, que eram suas e que a beleza delas a todos extasiava e causava desejos e luxúria. E, ó sarcasmo do fato, ele que era sem luxúria e sem beleza, fez nascer uma e outra.

E eis que ele se supreendeu ao dar-se conta de que era velho, o mais velho de todos que conhecia porque todos os de sua geração já haviam morrido e mesmo os de gerações mais novas também já tinham ido para o "outro lado", recebido a visita da Velha Senhora, mas não ele, ele ainda perambulava pelo mundo e, achando-se santo e por não morrer, resolveu que devia ser mais que um santo, mas que todos os Santos e clamou a Deus para que lhe viesse falar para discutirem seu "status" no mundo, acima dos homens, acima dos santos, puro, sem pecado algum e imortal, havia de ser um semi-deus.

Atormentado pelos seus chamados insistentes, Deus veio até ele e perguntou a razão para tanto! Após ouvir toda a história e a dúvida excruciante que o afligia, Deus disse que ele não era imortal, nem santo, nem mesmo era homem.

- Não és imortal porque nem vida viveste; não és santo porque estes venceram as tentações dos pecados e tu nunca sequer percebeste as tentações e apenas por isso não pecou; não és homem, porque todos os homens pecam, por isso são homens.

Deus, o Absoluto, se foi, rindo sonoramente em terremotos, deixando na terra Aquele-Que-Nada-Era, se não a negação de si próprio.

 
 
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