REFORMA DOURADA
Jorge Silva

É nossa obrigação descobrirmos por intuição o que o mundo espera de nós. E reagirmos em conformidade com o desejo expresso nas normas de conduta universais de um cidadão modelar.

Temos o dever de obedecer, sem hesitação, ao padrão que nos impõe quem dita as regras do jogo jogado em equipas de um, em perfeita coordenação com os restantes, mandantes que nos rodeiam em circunferências que tocamos vezes sem conta, nos múltiplos pontos de intersecção. Fazemos parte da geometria do sistema, integrados à força por só a força nos permitir sobreviver neste mercado global. Os números que somos e os números que fazemos acontecer, divisas transferidas para outro bolso qualquer, o que valemos para a sociedade mede-se dessa maneira.

O rol de imposições não tem fim e renova-se, adapta-se ao tempo e acompanha-o, cresce desmesuradamente ao sabor das necessidades de quem nos obriga a aceitar. Aceitamos de bom grado, se quisermos prevalecer. Obrigado. Pelo direito de termos uma função, de sermos peões da infantaria mercantil, carne para canhão deste xadrez milionário, inteligente, que nos empurra em frente para a vitória financeira de alguém. A glória aos vencedores. Tudo cintila em seu redor, candelabros monumentais e outros sinais exteriores. Sinalização de sentido único na via para o sucesso, prioridade a quem se apresente poderoso, bem sucedido, famoso. Ou simplesmente doutor. Coisas que se aprendem com facilidade no código em vigor. Trivialidades. Obrigado outra vez, caso nos tenha escapado esse primado da gratidão que todos devemos a quem gere os complicados mecanismos, a quem molda e domina os destinos das marionetas, palhaços pobres, cristãos num coliseu romano onde as feras constituem sempre a principal atracção. Figuras secundárias, peças anónimas que se retiram, sucata, uma vez esgotada a capacidade produtiva ou exacerbada a loucura que nos revolta contra um estatuto inferior que não sentimos merecer. Que nos empurra sobre manteiga pelo percurso onde as tabuletas indicam pontos de passagem, apeadeiros, nessa viagem sem regresso para fora da instituição social. Ingratos anónimos que assistimos impotentes ao avanço da locomotiva que nos persegue sem descanso até ao momento de nos trucidar. Basta abrandar a passada. As placas metálicas e frias acompanham-nos pelo trajecto, inequívoca toponímia de um desvio para o purgatório. IRREVERENTE. INCÓMODO. Já passaram duas. INCONVENIENTE. À beira de descarrilar. MALUCO. PERIGOSO. Rodas fora dos carris, enorme pressão de força centrípeta, inferno. MARGINAL. Fim da linha para o prevaricador.

O sistema é perfeito, recicla. É um organismo vivo que expulsa liminarmente qualquer foco de infecção, antes que alastre, com a facilidade de quem espreme uma borbulha entre os polegares. O problema acaba ali. A outra solução consiste em deglutir o micróbio, gentinha, quebrar-lhe a espinha pela inevitável ambição. Reconversão da unidade defeituosa, reintegração. Como uma segunda oportunidade, generosidade e perdão. Divinal.

É também nossa obrigação, por inerência, concluir que as coisas são mesmo assim e é assim que deverão permanecer, imutáveis. Sem ondas nem sombra de contestação. Alguém pensará por nós as tarefas que nos serão destinadas, a nossa utilidade comercial. É disso que se trata, contribuinte generoso, sustentáculo anónimo de todas as formas de poder. Até pode conquistar o seu, privado, num posto intermédio de chefia ou na primeira oportunidade em que outros dependam de um gesto seu ou da sua importantíssima tomada de decisão. Um privilégio, cidadão pequeno e obscuro, encalhado, frustrado, na mais remota secretária de uma fastidiosa repartição. Usufrua sem cessar, não cansa. Evite a fadiga intelectual, dão enxaquecas de morrer esses golpes profundos na consciência que derivam da mais inocente constatação. Não pense de todo. Domine o seu semelhante e recupere, num saboroso instante, a auto-estima arrasada pelo domínio do seu superior. Por qualquer das pessoas que mandam em si, seja onde fôr. Injustiça vingada, honra lavada, raiva expelida como vapor pelo pipo de uma panela de pressão. Grão a grão, até à absoluta mesquinhez.

Palermices de burguês mimado, alguém afirmará a propósito do discurso. Com alguma razão. É pecado, morder assim a mão que nos alimenta o sonho impossível de realizar. O projeccionista troca as bobinas, encaixa a película e o filme surge, esplendoroso, na tela vazia da nossa imaginação. O que quisermos ver, sessões contínuas, argumentos à medida das fantasias de cada um. Histórias impossíveis de acontecerem, motivação, publicidade enganosa que promete a felicidade para vender a desilusão. Só se dá conta no final, quando o tempo restante não basta para emendar a asneira que se fez. Podia ter sido de outra maneira, pois é. Tarde demais. E antes que essa conclusão que só a experiência da vida lhe pode fornecer seja partilhada com o seu sucessor, a peça de substituição antecipadamente treinada para lhe evidenciar a obsolescência e o incentivar a saír pelo seu pé, reformado, a própria sociedade tratará de o descredibilizar com o rótulo de velho, logo incapaz. Ninguém liga ao que disser.

Assumimos então a condição de fardo, sobrecarga para os filhos adultos que não vimos crescer e que agora estão cheios de pressa para trilharem o mesmo caminho no ascensor do sucesso, sempre mais rápido que o da geração anterior, para a subida ao ponto mais alto da sua destruição enquanto pessoas felizes e de bem.

Mas quando as portas do elevador se abrem e somos nós o passageiro excedente na lotação, aquele que deve saír para que a coisa funcione, constatamos ter chegado a uma cave, ou com sorte a um rés-do-chão, depois de tanto tempo supostamente a subir.

É nessa fase da vida que a máquina nos oferece a mais requintada manifestação da sua eficácia e compreendemos por fim a consequente inevitabilidade do seu aperfeiçoamento e perpetuação. Qualquer ancião, acotovelado pela multidão que o ignora no cais onde julgava ser o destino da sua chegada, intui sem grande esforço que a sua derradeira obrigação como cidadão moderno exemplar é, afinal, a de apressar a respectiva partida. Para não atrapalhar o sistema.

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