TEMPO
Marco Aurélio Brasil Lima

Tive as últimas horas bem conturbadas. Ontem à noite estive na formatura de amigas queridas que, contudo, resolveram colar grau do outro lado da cidade. Estava chegando bem tarde em casa, e nas proximidades do meu portão uma Variant suspeita (a essa hora da noite, no Capão Redondo, "variant suspeita" é redundância) transitava lentamente. Não parei, continuei até a próxima esquina, onde dei a volta e dei de cara com a dita e com seu motorista, não exatamente um modelo de beleza ocidental atual e tampouco inspirador de muitas confianças, especialmente pela forma um tanto quanto intimidativa com que colocou o rosto para fora, diminuiu a velocidade e nos encarou.

Passei direto pelo meu portão de novo e tentei voltar, quando cruzei com a Variant pela terceira vez. Ao passar por mim ele imediatamente começou a fazer a volta para vir atrás. Além da Tatiana estava comigo a Fernandinha, que iria dormir lá em casa, mas que, quem sabe inspirada por uma súbita saudade da mãe e do seu enorme cachorro, sugeriu que fôssemos todos dormir na casa dela, sugestão imediatamente acatada com prazer.

Sem mais Variants por essa madrugada, dormimos agradecidos a Deus por estarmos em segurança. Levantei cedinho e toquei direto para o trabalho, comi alguma coisa já respondendo e-mails e abrindo relatórios, depois tive que sair correndo para ver se estava tudo bem em casa, pegar as coisas que não tinha tido tempo de pegar de manhã e aproveitar para comprar um CD no SELS a pedido da sogra, correndo pra chegar antes do meio-dia, quando tudo fecha por lá.

Pois bem, e no meio desse rush tive uma visão fantástica. Praticamente surreal. Todo esse relato foi só para insinuar o impacto que teve em mim ver o que vi. Estava descendo o mundialmente famoso Morro do "S", que estava apinhado de carros já que os buracos do asfalto obrigam todo mundo a tomar uma pista só num ponto de quem sobe, ouvindo buzinas e motores e respirando o pó e a fumaça quando olho para o que deveria ser a calçada (e não passa de uma estreita faixa de terra) e vejo um jegue. Ele estava paradinho, equilibrado no fiapo de terra, e um homem de pé no meio-fio o acariciava na cabeça. O homem, jovem ainda, com um longo rabo-de-cavalo, segurava na outra mão a vara que denunciava sua condição de deficiente visual.

Dei voltas e voltas em torno daquela cena, em pensamento, até chegar aqui. No meio da correria sem fôlego que eu estava, e da qual o restante inteirinho do mundo parecia partilhar, um homem que descia por uma calçada irregular com titubeantes passos de cego, ao deparar-se com a inusitada presença de um jegue empacado resolve parar - mesmo na rua, onde os carros passam em velocidade - e gastar seu tempo em afagos, com um sorriso transbordante no rosto.

Há algum tempo aprendi que não existe nada que revele mais a respeito das prioridades que temos na vida do que a forma como empregamos nosso tempo. Quando tive um encontro pessoal substancial com Cristo, quando minhas prioridades foram radicalmente alteradas, comecei a dar plena atenção ao quesito "aproveitamento do tempo". Toda viagem de ônibus tornou-se então ocasião de leitura. Toda sala de espera mereceu então uma rápida e rigorosa triagem de conteúdo nas revistas, para eu não perder tempo, enfiar conhecimento no cérebro. Todo filme inútil e programa de TV com cheiro de lixeira foi radicalmente cortado e chegou uma hora em que mesmo bate-papo com amigos me incomodava um pouco, porque eu tinha que "aproveitar o tempo". Eu corria na quadra, jogava basquete, e se o povo resolvia ficar conversando depois eu dizia tchau e picava a mula - com o perdão do supracitado jegue (sentido denotativo, amigo, relax).

Bom, percebi que a idéia de aproveitar o tempo era fantástica, mas talvez alguma coisa se tivesse perdido nessa sanha irrefreável de não ficar à tôa. Não estou certo de ter achado o equilíbrio, mas sei que, em nome do famigerado tempo bem aproveitado, deixei passar alguns jegues do caminho sem parar para acarinhá-los.

Por que é bom fazer cafunés num jegue? Não sei dizer, mas vejo que tanta coisa que nos faria sábios se tão somente nos puséssemos a contemplá-las com vagar e deleite passam em branco, e continuamos empobrecidos, pulando os jegues da vida! Estou falando de animais, de paisagens, de textos, e-mails, mas, essencialmente, de pessoas. Quanta gente no nosso caminho, a quem faria tanto bem um tempinho para olhar e ouvir, e que nos faria tanto bem também! Passa um cego e vê. Nós passamos, olhamos e deletamos na seqüência. E quantas vezes passam também por nós com tanta pressa (desculpem a identificação com jegue, que pode parecer pejorativa aos mais sensíveis), quando gostaríamos tanto que fosse perdido algum tempo...

Descobri que nossas prioridades continuam sendo explicitadas pela forma como gastamos nosso tempo, mas descobri também que não só deixar de perder tempo é importante. Pessoas são importantes. Reflexão e contemplação também são. Vão haver ocasiões que até um mau programa de TV ao lado de alguém vai ser ganhar tempo. Na maioria das vezes não, mas naquele momento... É preciso estar com os olhos abertos para ver. Hoje o jegue posso ser eu, amanhã pode ser você, e vai chegar um dia em que ambos seremos jegue e cego.

Então é o que desejo a você e a mim. Olhos abertos para ver.

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