DOM CASMURRO - UMA
SUPOSIÇÃO LIVRE
Adlai Hoartmann

Eu não estou morto, ou estaria, mas seria apenas hipótese, morto ou não, questão de conceito acredito, vivo só e casmurro. Visitam-me para que me vejam por pura curiosidade felina, eu sem truques ou doces e um milhão de anos mais velhos, os meninos. Não tenho essas pretensões estranhas de J.D.Salinger, sou apenas só e menos. Tenho um gato. Que dei um nome: Escobar. Escobar é orfão de pai como todo gato. Costumo dizer a mim mesmo que Escobar é um sobrinho distante que agora vive comigo e que esquenta minha sopa. Ezequiel meu filho está morto, soube ontem mesmo através de um telegrama por baixo da porta.Tenho um retrato de Ezequiel sobre o criado, mudo. Junto a outros retratos, inclusive de Capitu com seu moderado sorriso de Gioconda. Sinto falta de Capitu, morreu tão antes de mim, lembro de sua partida, do desespero dos pais, da encomendação, todos choraram menos eu que vencia a mim mesmo, atento ou tão exageradamente consternado, algo confuso que me lembro, poucas lágrimas verteram que sei, e ainda assim não chorei.

Lembro do corpo, afogado em sal (ou vinagre) já quase cadáver mas preservando vida aos meus olhos ressaqueados que a fitavam apaixonadamente. Lembro do arrepio terrível que me partiu a espinha, Escobar, não o gato, mas o amigo morto, me tocou o ombro, senti, e não disse nada, engasgou-se e envergonhado me deu as costas. Tenho um retrato de Escobar. E todos os retratos estão mortos. Logo eu ainda estou vivo, logo eu que já quase fui padre com pretensões de Bispado e hoje desconfio que Deus me pregou uma peça. Não estou morto, estaria se quisesse, vivo só e casmurro, eu, meu gato e o criado, mudo.

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