TRAUMA DE SUPOSITÓRIO
Eduardo Loureiro Jr.

Junte "para bom entendedor, meia palavra basta" com "gato escaldado tem medo de água fria" e você terá o Gilvane.

Segundo o que seu psicólogo me contou, infringindo o sigilo profissional, Gilvane tem um terrível trauma de infância de supositório. Não pode nem ouvir a palavra, não pode ouvir sequer meia palavra.

Desde criança, Gilvane era um excelente entendedor. Menino curioso que não deixava passar uma palavra desconhecida sem que perguntasse ao pai o significado. O pai de Gilvane, por sua vez, era um verdadeiro devorador de manuais de pedagogia, atualizado em relação aos mais modernos métodos de educação e obcecado pela criação do filho perfeito.

Se Gilvane perguntava alguma coisa, o pai fazia questão de deixar tudo bem claro, sem reticências e, como "a linguagem adulta é com freqüência incompatível com o psiquismo infantil" - assim ele leu em um livro -, preferia sempre mostrar para o filho, na prática, o significado das palavras, ao invés de simplesmente listar seus sinônimos.

Quando Gilvane, com apenas 5 anos, quis saber o significado da palavra inconstitucionalissimamente, o pai o levou a uma sessão da câmara de vereadores, por sorte e coincidência bem na época da aprovação do orçamento municipal.

E quando seu filho ouviu pela primeira vez a palavra ojeriza, o pai de Gilvane fez questão de trazer para o filho um presente, uma caixa contendo tudo de que o menino menos gostava: uma foto da tia a quem era obrigado a pedir a bênção, uma bota ortopédica, uma pequena rã pegajosa - que logo lhe saltou à cara - e uma pedra-pomes nova, com que a empregada nada delicada lhe tiraria o ceroto das brincadeiras de rua.

Depois disso Gilvane ficou menos curioso e passou a evitar perguntas ao pai. Preferia ficar ignorante sobre o que era "ostensivo", "fubecada" ou "ziguizira" a ter que enfrentar uma nova explicação prática e desagradável.

Mas, um dia, como o pai lhe desse a opção de tomar um medicamento como comprimido ou supositório, Gilvane, até para fazer a escolha certa, cometeu a infelicidade de perguntar o significado da palavra. O que era uma dúvida se transformou na escolha e o pai enfiou-lhe o supositório onde devia. Aliás, meio supositório, Gilvane também era bom entendedor da cintura para baixo e prendeu a cápsula com o cu. O pai tentava empurrá-la, Gilvane resistia.

Até que o pai desistiu. Mas o supositório ficou preso, porque o músculo, tenso, não conseguia mais liberá-lo. Foi o jeito ir ao médico que, recém-formado e ainda com o vício das palavras difíceis, perguntou ao menino se preferia trespassar ou retrogradar. O menino ficou calado - não queria ser mais uma vez o culpado pela própria infelicidade -, mas, como o pai achasse que ele já sabia o significado de retrogradar, Gilvane foi trespassado.

Desde então tem trauma de supositório. Já crescido, parou de comer e aderiu a uma terapia esotérica em que se alimenta só da luz do sol. Sem comer, não caga, sem botar para fora não lembra do que já entrou. Até o desejo homossexual, que se manifestou durante a juventude, nunca foi consumado. Gilvane é virgem porque pensa no pênis de seus possíveis amores como grandes supositórios.

Por isso quando, no trabalho, o chefe ou um colega o aborda, pedindo a sua opinião sobre algum assunto, Gilvane treme todo e procura terminar a conversa o quanto antes. Gilvane sabe que mais cedo ou mais tarde seu interlocutor vai lhe propor, inocentemente, sem saber do seu trauma:

- Pode ser, Gilvane, mas suponha que...

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